Entrevistas,  Vida e Carreira

Entrevista com: Mayara Oliveira – A vida em aquarela

 

Era madrugada e uma americana praticava desenho de letterings na cozinha do apartamento em Berlim. Mayara viu naquela cena uma liberdade e uma beleza que sua vida mudou definitivamente a partir dali. Publicitária desde a oitava série do colégio, como costuma brincar, sempre foi incentivada pela mãe a pensar desde cedo sobre a vida profissional. Depois de três estágios como diretora de arte – e eu tive a alegria de encontrar com ela durante um deles -, se formou em Publicidade e Propaganda e decolou para a terra do nunca dos criativos. Na Alemanha, viveu aquele tipo de experiência que nos deixa frente a frente com o que a gente realmente quer ser. Lá pegou uma caneta de caligrafia pela primeira vez e não parou mais de ilustrar. Aos 23 anos – até dezembro – e realizada como ilustradora, May me recebeu no seu lindo e aconchegante canto criativo, aqui em Porto Alegre, pra contar pra gente como foi desenhar esse novo caminho profissional, sobre as experiências na Alemanha, sobre trabalhar em estilo home office, sobre romper com um padrão de trabalho antigo e também sobre a dura, porém saudosa, volta ao Brasil.

 

 

Como foi, enquanto estudava Publicidade e Propaganda, estagiar na área, em uma agência de comunicação, lugar onde você trabalhou antes da sua ida para a Alemanha? Foi importante, eu tive o apoio que precisava na época. Apesar de ser um ritmo bastante frenético durante boa parte do ano, trabalhei com um sorriso no rosto porque eu realmente gostava do que fazia.

Em que momento você sentiu que queria fazer outra coisa e o que fez você não querer mais atuar como diretora de arte em uma agência de comunicação? Na minha estadia em Berlim, definitivamente. A cidade é pura arte e lá conheci muitos designers e artistas. Inclusive, morei com uma americana que, às vezes, tarde da noite ficava na cozinha desenhando e criando letterings. A cozinha era o lugar comum para todos que moravam ali, já que na Alemanha é difícil ter casas ou apartamentos com sala. Vi naquela situação uma liberdade tão grande, uma beleza, uma graça, que decidi seguir os passos. O que eu acho uma pena, na verdade, que eu tenha descoberto isso tarde. Aqui no Brasil, o incentivo para a carreira artística é mínimo.

Você decidiu viajar pensando em descobrir o que queria da vida ou mais porque era a hora certa e lá fora foi onde tudo aconteceu? Porque foi a hora certa. Antes de tratar tudo para a viagem eu nunca imaginei que seria possível morar fora do país. Pra mim, era uma realidade distante. Fui pra lá sem expectativas. Aprendi que na maior parte das vezes elas atrapalham. Então eu literalmente deixei a Alemanha me guiar.

Por que escolheu a Alemanha? E como você se organizou, como foi seu planejamento para passar um período longe de casa? Escolhi pela facilidade. Meus tios moram em Munique e meu namorado em Berlim, o que deixou tudo muito mais fácil. Mas nunca pensei em ir pra lá, muito menos em morar. Em agosto de 2015 ficou decidido que eu iria e no dia 1º de março de 2016 eu estava lá. Ou seja, em seis meses consegui resolver tudo o que podia aqui no Brasil para agilizar a papelada do meu visto na Alemanha que era, sem dúvida, o mais importante. Deu tempo de sobra e ainda consegui aproveitar bastante o verão e a família, que inclui o cachorro.

 

 

 

Como você mesma pode conferir, a Alemanha é um território livre para criativos. Na série Abstract: The Art of Design, do Netflix, já no primeiro episódio o país é muito aclamado como um lugar extraordinário para artistas e criativos. Como isso se confirmou pra você? Como você enxergou a atuação dos criativos seja no mercado, nas oportunidades, no caminho do aprendizado? Totalmente verdadeira essa afirmação. Vi esta série e posso falar de boca cheia que Berlim é o lugar certo para qualquer artista. Passei a ver tudo com outros olhos, inclusive o grafitti. Lá não existe diferença entre grafitti e pixação, é tudo arte. Claro, lá existe respeito pelos prédios históricos, públicos e monumentos. Nenhum deles é grafitado, o que dá pelo menos a sensação de equilíbrio. Em Berlim, fachadas inteiras de prédios são grafitadas. O próprio muro de Berlim é coberto de mensagens e desenhos incríveis. Durante o verão, a cidade é pura alegria, com karaokê aberto no Mauer Park, o Parque do Muro de Berlim, com oficinas de desenho, até com modelos nus, abertas ao público, workshops de arte, meetups de absolutamente tudo que se pode imaginar: arte, comida, bebida, música, passeios, exercícios. Ou seja, liberdade criativa não falta, inclusive na propaganda. E, sem dúvida, quem escolhe a Alemanha pra viver e trabalhar vive e trabalha muito feliz. Berlim tem muita vida. Esse lugar tem uma magia especial.

Você encontrou muitos brasileiros por lá? Somos bem vindos como trabalhadores e estudantes? Muitos brasileiros. Estamos em todos os lugares, em número expressivo. Mas nunca vi ou senti preconceito em relação ao Brasil ou ao brasileiro. Inclusive, perguntavam muito porque eu havia saído de um país tão maravilhoso como o Brasil. Acredito que eles não conheçam nossos defeitos. Somos bem vindos desde que haja o respeito às regras. E existem muitas, desde atravessar a rua até tocar no cachorro alheio. É preciso ter cuidado nesse sentido, caso contrário, pode ter certeza que algum alemão vai te chamar a atenção.

O que exatamente você fez? Estudou e trabalhou também? Apenas estudei Alemão. Embora tenha conseguido um trabalho como babysitter de uma família americana.

Qual foi o maior choque vivendo, estudando ou trabalhando por lá, aquilo que mais te marcou? Poder ir e vir em toda Berlim e Munique, a qualquer hora do dia e principalmente da noite sem ter que sentir medo.

Conseguiu conviver com os locais ou o dia a dia acontecia mais em meio aos brasileiros? Evitei estar em volta de brasileiros, acho que isso poderia me atrapalhar. Mas todos os alemães me trataram muito bem. Chega a ser cômico porque o que mais tem em Berlim é estrangeiro. Então, muito precisei falar em inglês e conviver com outros costumes.

Como surgiu o primeiro contato com a aquarela e a caligrafia? Como aflorou o desejo de tornar isso o teu trabalho? Teve alguém que te ajudou no aprendizado? Você chegou a trabalhar com isso lá? Meu primeiro contato foi através dessa colega de apartamento. Foi com ela que peguei a primeira caneta de caligrafia. Depois disso, precisávamos mudar de apartamento e, então, resolvi alçar voo sozinha, desenhando e aprendendo a escrever por conta própria. Fui em lojas, comprei canetas erradas, mas pelo menos fui atrás. A aquarela veio um pouco mais tarde. Eu e meu namorado estávamos prestes a encarar a terceira mudança, mas dessa vez para um apartamento que seria somente nosso e, então, com um quarto extra vazio no apartamento fiquei inquieta mais uma vez. Num passeio aleatório, comprando coisas pra casa, vi papéis, tintas e pincéis de aquarela. Resolvi comprar. Aquele seria meu espaço, meu estúdio. Dei minhas primeiras pinceladas num papel de péssima qualidade com um pincel pior ainda. Mas, apesar disso, fiquei tão fascinada que meu coração acelerava só de pensar em acordar no dia seguinte, sentar na minha mesinha, no meu humilde estúdio, e pintar.

 

 

 

 

 

Como foi voltar para o Brasil? Chorei muito. Mas foi bom. Rever a família, ver sol todo dia, ter meu quarto minúsculo de volta com todas as minhas coisinhas. Eu senti saudade do meu cantinho. Estar com os meus amigos que eu sonhava em ver nos finais de semana. Na verdade eu voltei conformada, eu sabia o que me esperava aqui, sabia o que eu ia voltar a encarar todo dia.

Voltou porque o período de estada terminou por lá ou porque você queria desenvolver seu trabalho por aqui? Voltei porque meu visto tinha prazo de apenas um ano. E eles enfatizaram que eu deveria voltar depois desse período. Então achei melhor não procurar encrenca com eles.

Depois da experiência na Alemanha, como você vê o mercado daqui pra quem está começando a caligrafar e a fazer desenhos personalizados em aquarela? O que você sentiu de diferente ao desenvolver esse trabalho no Brasil? A receptividade foi impressionante mas o mercado ainda é novo. Quase parece que não existe porque pouca gente sabe ou se interessa por essa área. Mas, apesar disso, muita gente quis adquirir. Acredito que pouca gente se interessa porque, fora a falta de incentivo, é um trabalho caro, muito caro. Em todo Brasil, pasmem, existe uma loja com bons e diversos materiais para arte. Sorte minha que ela fica aqui em Porto Alegre, assim não preciso esperar o correio dar as caras todo mês.

Você se sente parte de uma mudança significativa do mundo do trabalho que vem acontecendo, de uma não aceitação dos modelos antigos das relações trabalhistas? Você sentiu essa estagnação nas empresas? Eu acho que faço parte dessa mudança, com certeza, mas só faço parte porque eu pude conhecer algo além disso. Minha geração veio para se aventurar, isso ninguém pode negar. Veio para buscar a felicidade no que faz, não para fazer carreira em empresa, como a geração dos meus pais. O Brasil tem gente muito boa, muito criativa. Pena que tudo precisa ser tão duro por aqui, no sentido de penar para conseguir muito pouco.

Quais são os artistas que você admira ou que te inspiram no momento? Eu ainda sou muito nova nessa área, mas do pouco que conheço, gosto muito dos traços delicados da Jenna Rainey, as pinceladas certas do Alex Powers e Charles Reid. Além disso, tive uma epifania enquanto visitava o Museu do Van Gogh em Amsterdam, o melhor e mais incrível museu que já visitei. Lá meu coração palpitava dizendo “É isso! É isso! É isso!”.

Qual foi teu maior desafio? Seja redirecionando teu caminho na profissão, se estabelecendo na Alemanha, vivendo lá ou de volta ao Brasil. O maior desafio acredito que foi voltar para o Brasil e tentar me encaixar aqui. Na Alemanha, pra ser sincera, eu pouco tentei por medo. Mas, quando tentei, consegui. Fui aceita pra trabalhar, mas tudo isso aconteceu meio tarde, quando faltavam poucos dias pra eu voltar. A papelada pra mudança de visto, plano de saúde… era muito pouco tempo pra acertar tudo e conseguir permanecer lá legalmente. Aqui fiz entrevistas, mandei mil e um currículos, mesmo sabendo que eu não seria plenamente feliz voltando a trabalhar grudada na tela do computador mas, aparentemente, aqui, minhas habilidades manuais chamam a atenção mas não são valorizadas.

 

 

 

Como tu mesma já disse e também vendo pelas tuas postagens de trabalhos em redes sociais, tu estás realizada, ama o que faz. Você consegue ter períodos vagos, em que não esteja desenhando ou caligrafando, ou simplesmente tu ama tanto fazer isso que não sabe ao certo quando termina o expediente e quando começa o teu tempo livre? (Risos) Eu acho que depois da minha estadia na Alemanha eu aprendi o valor do tempo livre. Óbvio, faço os meus horários, mas antes eu não fazia essa separação, eu dizia que gosto tanto do que faço que, o que eu faço é meu tempo livre. Mas percebi que tinha um erro brutal aí. Antes, quando eu passava horas intermináveis do dia na frente do papel e da tinta, eu errava muito mais e, consequentemente, gastava muito material. Tudo isso pelo cansaço mental, às vezes a mão começava a tremer, tinha dor no pescoço e tudo isso afetava a minha criatividade, assim como o próprio trabalho, coisas que aconteciam e eu não percebia que era meu corpo pedindo descanso. Então, hoje, meus horários funcionam de acordo com o meu espírito. Tem dias que acordo às sete da manhã, sento na mesa e começo a rabiscar. Tem dias que fico até as três da manhã estudando ou pintando, mas tudo pausadamente. Paro pra comer algo, paro pra me alongar, paro pra assistir um episódio da série do momento… Ninguém é de ferro com Netflix hoje em dia. Dou pausa para a leitura. Mas enquanto tenho ânimo, eu trabalho.

Como é a tua rotina? Você consegue ter uma e se organizar trabalhando por conta própria? Quais são os desafios, pra ti, de trabalhar em estilo home office? Consigo ter uma rotina, isso é bastante tranquilo pra mim. O momento crucial da minha vida foi o último semestre da faculdade, com estágio, mais umas cinco cadeiras com trabalhos enormes e o TCC. Tudo isso dependia somente do meu esforço. Ali eu consegui ficar muito disciplinada e, o melhor de tudo, foi a recompensa. Foi o melhor semestre de todos, com notas acima de oito e meu TCC que foi nota dez. Ou seja, meu esforço e minha disciplina recompensaram muito. Então, mesmo tendo um trabalho estilo home office, eu levo muito a sério acordar cedo, trabalhar oito ou mais horas por dia, como eu faria normalmente caso eu trabalhasse em um escritório, agência ou qualquer outro lugar com horários definidos. Isso não é nenhum problema pra mim.

Você trabalha também em espaços coworking ou prefere trabalhar só em casa? Não, tudo que faço, faço em casa. Queria e quero muito um espaço só meu, onde eu pudesse pendurar na parece imagens e quadros que me inspiram, deixar minha bagunça organizada em cima da mesa e só chegar e trabalhar no meu espaço iluminado e aconchegante. Mas, infelizmente, tendo consciência dos meus planos para o futuro, não valeria a pena gastar esse montante de dinheiro alugando sala, sabendo que eu vou investir tudo isso em algo mais importante no futuro.

 

 

 

As redes sociais são ótimas aliadas para mostrarmos nosso trabalho e estabelecermos contatos profissionais. Vi que você converteu o perfil pessoal do Instagram para um perfil profissional. Como foi essa decisão? Você optou por não compartilhar mais seus momentos particulares? Eu tomei essa decisão tranquilamente. Antes mesmo eu já usava o Instagram pra postar fotografias de paisagens, comidas e coisas que não eram diretamente ligadas a minha vida pessoal. Raríssimas as vezes que postei fotos minhas com meus amigos ou família e, quando o fiz, excluí pouco tempo depois, justamente por não me sentir confortável compartilhando esses momentos e, visualmente falando, essas fotos com vários rostinhos sorrindo para a câmera não me agradam por destoarem completamente do meu estilo de fotografia. O Instagram sempre foi uma ferramenta muito mais profissional do que pessoal pra mim. Cheguei a pensar em seguir carreira como fotógrafa até descobrir que seria exorbitantemente caro seguir esse caminho. Quando quero compartilhar algo que seja pessoal, uso o Facebook. O Insta é mais importante do que qualquer outra rede social. Inclusive, recebo quase todos os pedidos por ele.

Durante a tua experiência fora do Brasil, recebeu algum conselho valioso que queira dividir com a gente? “Vai e faz, sem medo”. Lá eu percebi que eles valorizam muito a vida, os dias bonitos, a inocência, a vida simples. Se um ano passa voando, imagina quando a gente for mais velho, quando chegar aos oitenta, noventa anos. O que você deixou para trás? Uma vida em que você viveu feliz ou uma vida que viveu por obrigação? Eu não me arrependo nem por um segundo da minha escolha. Posso demorar pra chegar no sucesso, posso demorar mais pra conseguir dinheiro, mas desde o início vou dizer que fui e sou muito feliz. Mesmo que demore, eu sei que meu esforço vai valer a pena.

O que você teria feito de diferente enquanto estudante? Se eu soubesse que era possível, se eu tivesse o incentivo que eu precisava, teria estudado artes mais cedo. Talvez não tivesse nem escolhido a Publicidade. Não me arrependo. Mas não seria minha escolha hoje em dia.

O que você diria pra quem quer mudar de atividade ou que ainda não sabe o que quer fazer da vida? Que ter medo de mudar faz parte. Que quebrar a cara também faz parte. Que ouvir “não” é bem comum e dói. Mas se existe amor e vontade de fazer, que mau tem em tentar?

E quando eu pergunto May, o que tu mais ama no teu atelier? ela me responde:

 

Para conhecer mais sobre o trabalho da May, visitar o portfolio completo, obter contatos e links para as redes sociais dela, é só clicar aqui. A visita já vale pelas fotos que ela produz para expor as pinturas, uma mais linda que a outra!

 

Fotos e texto: Juciéli Botton para Casa Baunilha

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