Porto Alegre está de aniversário! No próximo domingo, dia 26 de março, ela completa 245 aninhos. Uma guriazinha. Uma guria que já viu de um tudo, passando por todas as transformações possíveis para um centro urbano. Algumas “uau” e outras nem tanto. Quem me contou tudo isso e mais um pouco foi o Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo, na Rua João Alfredo, no bairro Cidade Baixa. Achei que a melhor forma de celebrar a vida na cidade era conhecendo um pouco mais da vida da cidade, de onde veio, pra onde vai, do que se alimenta. Mas mais do que saber sobre Porto Alegre, eu refleti sobre as transformações que o ser humano provoca em qualquer esfera, seja nos comportamentos, nas casas, na política etc.
Indico a visita guiada pois oferece mais informações, além de proporcionar questionamentos sobre o tema da urbanização. Muito, muito legal. Quer dizer, tri legal.
Então se preparem, porque eu me esmerei no presente. Vem textão pela frente, afinal, tem que estar à altura da aniversariante, não é mesmo?
Quando fiquei sabendo que antigamente o Arroio Dilúvio passava em frente ao museu, percebi a dimensão das modificações que a capital gaúcha sofreu e o quanto nós estamos acostumados com a cidade do jeito que ela é hoje. Tanto que, modificações como essa, como o desvio de um arroio, são quase que impensáveis. Se bem que se eu parar para pensar que o arroio nasce limpo e vira aquilo depois… não há com o que se espantar. Então, caro leitor, quando você for para a sua balada de todo sábado na familiar Rua João Alfredo, visualize correndo por ali o arroio nosso de todo dia lá da Avenida Ipiranga.
É por isso que alaga tudo, gente. A cidade é construída sobre rios, córregos e, num determinado momento, ela não aguenta. Isso é reflexo da falta de planejamento urbano, de um olhar para o futuro, de se preocupar com o morar e o viver. Museu é isso, gente: visão crítica da coisa. Em última análise, eu fico do lado da aniversariante, que não tem culpa de nada, tadinha.
Desde 1982, o Museu habita um solar (pausa da vergonha pra quem só foi agora, em 2017), o Solar Lopo Gonçalves, uma casa antiga e que, graças a sua preservação, ajuda a contar a história da cidade e dos costumes entre os séculos XIX e XX. Solar era como se chamavam as casas de chácara das famílias ricas da época. Isso mesmo, numa das ruas mais boêmias da Cidade Baixa, situavam-se casas de descanso, de fim de semana, onde as famílias passavam um tempo bucólico, além de produzirem seus próprios alimentos por meio da criação de animais e das plantações. Esses contrastes são demais. Antes era tudo mato. Agora é tudo boteco.
O dono do solar era Lopo Gonçalves Bastos, um comerciante português que, dentre vários produtos, também comercializava escravos. Registros do ano de 1878 mostram que Lopo era a pessoa com o maior acúmulo de posses na capital, incluindo seus próprios escravos. Nesta foto aparece parte de uma lista com os nomes e idades deles. Notem que Juvencio era apenas uma criança de 6 anos. Junto à lista, uma ilustração do jornal O Século, de 1884, sobre uma conversa entre dois escravos: “Eles falam muito da nossa alforria, mas é tudo dos dentes pra fora”. Na hora pensei “poxa vida, um museu para lembrar da história da cidade justamente em uma casa de dono e comerciante de pessoas escravizadas… triste”. Mas, na real, é melhor que seja assim para que justamente esta memória permaneça viva. Afinal, a história de Porto Alegre não existe sem o sangue e o suor das pessoas escravas.
Seguindo na ordem dos acontecimentos, o solar ficou para os herdeiros de Lopo, servindo de moradia de cidade, e não mais uma casa de campo, para, mais tarde, pertencer à família Volkmer – dona de uma fábrica de velas na Rua Uruguai, no Centro. Posteriormente, foi comprado por uma associação e estava quase sendo demolido para dar lugar a novas habitações. Houve a mobilização de algumas personalidades para impedir, até que o solar foi, finalmente, preservado e restaurado, para então se tornar o Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo.
No período em que o solar pertenceu à família Volkmer ele era chamado de Casa da Magnólia, em função da árvore centenária do jardim que, ainda bem, está ali até hoje.
Observando a parte que explica sobre a estrutura da casa e as várias modificações da planta original, comecei a pensar em como a cozinha foi ganhando status de “o melhor lugar da casa”, visão que predomina hoje, quando todos nós queremos mostrar nossos dotes de chef – vide as cozinhas feitas em conceito aberto e gourmets, além dos 599 programas de gastronomia na TV. Mas estamos num solar escravista, então era assim que as coisas funcionavam: no piso ao nível da rua, no chamado térreo, ficavam a sala de convívio, os quartos e uma saleta para recepcionar. Lá no porão, bem escondida, ficava a cozinha e, nela, os escravos que serviam à família. A cozinha era um lugar sujo, esquecido, onde não se tinha o menor interesse em ficar ou, pelo menos, adentrar. Visto o valor que é dado à cozinha hoje, houve uma evolução em todos os sentidos, não é mesmo? E ainda sobre a estrutura da casa, o Rio Guaíba podia ser avistado de uma parte mais alta do solar, numa espécie de segundo andar, construído para servir de observatório. Imaginem vocês, hoje, na João Alfredo, enxergando o Guaíba.
Não havia coleta de lixo, nem mesmo um sistema de captação do número um e do número dois, se é que vocês me entendem. Para onde ia tudo? Enterrado no pátio. Havia uma casinha onde se depositavam as necessidades feitas, além dos objetos quebrados e outros lixos da casa. Ou seja, se você tem em suas posses uma casa antiga, vá brincar de escavar no pátio pois, provavelmente, encontrará louça importada além de inúmeros objetos que podem, com certeza, contar a história não somente dos moradores mas, também, dos costumes e da cultura de toda uma época. É aquela velha história: diga-me o que tem no teu lixo e te direi quem és.
Pois nas escavações do Solar Lopo Gonçalves foram encontradas bonecas de porcelana, uma inteira e apenas a cabeça de outra, além de pratos lindíssimos, alguns inteiros ou aos pedaços. Louças que demoravam a chegar pois vinham de fora, porque era lá que tinha. Também foram encontrados no pátio pedaços de cachimbo, provavelmente de escravos, pois eram feitos de cerâmica e eles mesmos criavam seus utensílios; um cabo de escova de dentes ainda com os furos das cerdas, feito de material animal.
Escova de dente e um outro cabo. O cabo é feito de osso e as cerdas eram, provavelmente, feitas com o pelo do animal. E detalhe: era uma única escova para toda a família. E havia uma ordem de escovação. Primeiro, o senhor da casa. Depois, a mulher e os filhos. Assim era para comer também. Primeiro, o dono da casa se servia, depois os demais. Que tal?
Louça importada, também encontrada nas escavações do pátio do solar.
Outros objetos curiosos, encontrados no solar, são a escarradeira e o penico, com belos desenhos feitos à mão – que, suspeito, têm a intenção de deixar as peças menos nojentas, disfarçando com ilustrações e cor. O penico, também chamado carinhosamente de urinol, foi produzido entre 1930 e 1960, em faiança fina europeia – um tipo de cerâmica branca. Ele era muito comum antes do vaso sanitário se tornar pop. Já a cuspideira foi feita em porcelana e costumava ficar no chão, auxiliando os doentes do século XIX.
Outro aspecto interessante sobre o solar e, portanto, sobre um costume da época, está nas janelas. Reparem nos vidros. Eles ficam para o lado de fora, após as venezianas, ao contrário do que é hoje. Isso era uma forma de ostentar, porque vidro era caríssimo – muitas casas só tinham as partes em madeira. Tanto é que, quando as pessoas se mudavam, levavam seus vidros onde quer que fossem. O mesmo era feito com os gradis, que quanto mais pomposos e cheios de detalhes e arabescos, mais representavam o quão ricos eram os donos.
Ao lado, detalhe da estrutura da parede do solar que mostra como as casas eram feitas. Em vez de barras de ferro, usavam madeiras, fibras naturais e, muitas vezes, esterco de animais.
A parte do solar da foto em seguida é a da varanda, uma das áreas construídas posteriormente, provavelmente para a família fazer as refeições. O teto é bem típico da época.
Assim como os objetos arqueológicos encontrados em escavações no terreno do solar, muitos outros também foram encontrados na antiga Orla do Guaíba – que existia antes dos aterramentos -, uma vez que era este o destino do lixo no século XIX, como mostra este mapa de Porto Alegre de 1939. Os pontos vermelhos indicam os locais onde eram despejados “ciscos e imundícies”. Isso foi estabelecido pelo código de “posturas” de 1837. Bem ali, na praia da Rua da Praia.
Na sequência, alguns dos objetos desse período, resgatados por escavações feitas nesses pontos de descarte da época. Imagina o que ainda deve ter por lá.
Uma taça praticamente inteira e muito linda, por sinal, em duas cores, além de garrafas de vidro e cacos de louças.
Na imagem da esquerda, “fragmento de bacia de louça fabricada no padrão borrão azul, com motivos chineses”, produzida entre 1828 e 1867 e encontrada no sítio arqueológico Praça Rui Barbosa. As outras duas peças, números 13 e 14, são fragmentos cerâmicos de objetos feitos por africanos ou por seus descendentes, entre os séculos XVIII e XIX. O 13 é do sítio arqueológico Praça Brigadeiro Sampaio e o 14 é do sítio arqueológico Praça da Alfândega. Na imagem da direita, em primeiro plano, “uma ponta de flecha de arenito silicificado, produzida por grupos pré coloniais”, encontrada no sítio arqueológico Praça Brigadeiro Sampaio. Ao fundo, “vasos utilizados em fundição de metais e outras operações com alto grau de calor. Eram utilizados no Brasil dos séculos XVIII e XIX para a fundição do ouro”. Encontrados no sítio arqueológico Paço Municipal.
No Museu do solar, há objetos encontrados em sítios arqueológicos espalhados por toda Porto Alegre. Como estes azulejos portugueses – morri – do século XIX, feitos em faiança e encontrados em uma antiga fazenda no bairro Lomba do Pinheiro, a Fazenda Boqueirão.
E falando em escavações na antiga Orla do Guaíba, o Museu mostra o “raio X” dos aterramentos de Porto Alegre, que a gente sabe que não foi pouca coisa. Em primeiro plano, de verde claro, temos Porto Alegre como a natureza fez. E numa camada mais abaixo, mais escura, a área aterrada.
O mapa ao lado mostra que os aterramentos aconteceram em dois momentos. Em verde, a representação de Porto Alegre no ano de 1839. Em vermelho, o aterramento realizado ainda no século XIX. Em amarelo, o do século XX. E a parte clara representa o nosso querido Guaíba.
Outros objetos como miniaturas e fotografias contam a história da época dos bondes em Porto Alegre. Poxa, se eles tivessem sido preservados, seria um atrativo e tanto na cidade, não somente para os turistas mas, também, pra gente. Seria demais.
Junto à miniatura do bonde, dormente de trilhos em madeira da antiga linha de bondes Carris. Encontrado na rua Coronel Bordini, entre as ruas Cristóvão Colombo e América durante a construção do Conduto Forçado Álvaro Chaves, em 2008.
Aqui, o bonde passando em frente ao Hotel Jung. A data da foto flutua entre 1950 e 1969.
Vários objetos são doados ao Museu pela população, para que ajudem a contar a história dos costumes da cidade, como o leque de madeira verde de 1910 e as caixinhas de pó de arroz de 1930, com ilustrações maravilhosas. Amei.
A seguir, a área verde junto a um lago – que mais parece um fantasminha – é a nossa querida Redenção. Ainda bem que hoje ela é muito mais arborizada que isso.
A seguir, três cenários bem diferentes do que estamos acostumados:
Ao lado do Mercado Público, uma grande praça com jardins daqueles em estilo parisiense. Hoje, esta praça já era, “se escafedeu-se” e, no lugar, temos o terminal de ônibus e as bancas de feira.
Igreja Matriz entre 1779 e 1846. A singela igrejinha foi demolida em 1929 para dar lugar à suntuosa Catedral Metropolitana dos dias de hoje – linda de viver, como diria a Hebe.
A Praça XV com seu charmoso chalé, o Chalé da Praça XV, rodeada pelos bondes que faziam a curva bem na esquina. Hoje sobrou somente o rastro dos trilhos entre o Mercado e a praça.
Em uma espécie de binóculo, podemos observar algumas fotos antigas de ruas conhecidas, como esta da Rua da República. Podemos ver um homem em sua fatiota e uma mulher mais ao fundo, além do visual de paisagem rural, “predominante no sul da colina da Duque de Caxias”, ou seja, na área da Cidade Baixa – Duque de Caxias no alto x Cidade Baixa na parte baixa, sacou?. Foi nessa paisagem rural que o solar foi construído.
Rua Caldas Júnior tomada pela multidão na ocasião da morte de Getúlio Vargas, em 1954. Abaixo, muitas outras fotos de tempos antigos, da Santa Casa, do Palácio do Governo, do Solar dos Câmara e da Igreja Nossa Senhora das Dores.
Num painel, muitas outras fotos de tempos antigos, da Santa Casa, do Palácio do Governo, do Solar dos Câmara e da Igreja Nossa Senhora das Dores.
A Igreja Nossa Senhora das Dores tem sua história contada num móvel antigo, pertencente ao Solar, que lembra uma cristaleira, ou até mesmo uma vitrine. Há um terço religioso para lembrar a lenda das torres. Havia um casal cuja moça pediu ao namorado que, em prova de amor, ele roubasse o terço de uma das santas da igreja. Ele foi lá, roubou, só que a culpa caiu sobre um escravo. No dia de seu enforcamento, rogou uma praga: que as tão sonhadas torres da igreja não fossem nunca construídas. E, pelo visto, funcionou, porque parece que a construção ficou mais de cem anos sem suas torres. No móvel dá pra ver uma imagem da igreja sem elas.
Olha ela nesta foto do período entre 1920 e 1932, toda linda e altíssima com suas torres. E a Usina do Gasômetro a todo vapor lá ao fundo da Rua da Praia? Espetáculo de vista.
Enquanto isso, no cais do porto, regatas a mil pelo Brasil. O cais realmente foi importante para o desenvolvimento dos esportes náuticos, impulsionados pelos descendentes de alemães. Por iniciativa de um jovem chamado Alberto Bins, em 1888 foi criado o clube de regatas Ruder-Club Porto Alegre, atual Clube de Regatas Guaíba-Porto Alegre (GPA). Bonito de ver a efervescência!
O solar ainda conta com uma área externa ampla e arborizada. Muito agradável e convidativa para tomar o bom e velho chimarrão após uma visita.
Parece mentira que há tanto espaço verde assim, em pleno fervo da Cidade Baixa.
Eu queria encerrar – sim, muito obrigada por ter chegado até aqui! amo você ♥ – esta viagem pelo tempo com um antes e depois chocante, que é o do Viaduto Otávio Rocha sobre a Avenida Borges de Medeiros – foto abaixo. A vista que se tinha do Guaíba era estonteante. Notem, na foto antiga, o grande volume de pedra natural à direita. As cidades se transformam? Sim, elas se transformam. A população cresce? Sim, e como. Mas não dá para não pensar em como teria sido bom um planejamento urbano a fim de distribuir a população de forma mais homogênea, com a regulamentação da construção urbana respeitando determinadas alturas, além do arejamento fundamental entre uma construção e outra – não é à toa que Porto Alegre é uma ilha de calor. E o que falar da relação da cidade com seu rio? Estar à beira de um rio deveria ser um privilégio, aproveitado ao máximo, sem poluição e com segurança, garantindo o acesso da população e, por consequência, promover a vida no cais e nas demais áreas à margem.
Porto Alegre amiga, vou te contar, tu é novinha mas não aparenta, viu? Bora sacudir a poeira, dar a volta por cima e dar uma recauchutada nisso aí. Tem muito para dar certo.
Feliz níver, guria.
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Uma sugestão ao Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo e um apelo à Prefeitura de Porto Alegre, ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul e aos empresários engajados na manutenção da cultura e da história de nossa cidade: Eu achei de uma baita importância um museu como esse. Toda a cidade deveria ter um museu que contasse sua história, independente do número de habitantes. Podemos nos sentir cidadãos a partir do conhecimento que temos sobre nossa cidade, nossa comunidade. Por isso a imensa importância de um lugar desses. Acho que merecia mais investimentos e ampliações. Sabemos que ele reúne dados entre os séculos XIX e XX, mas como um museu que se propõe a contar a história da cidade, poderia abordar tudo o que fosse possível sobre ela, até os dias atuais. Poderia explicar, por exemplo, porque se chama Porto Alegre. São poucos os lugares no país com um nome tão bonito. Falando em nome, poderia abordar também fatos curiosos como os nomes duplos que vários lugares têm, como a Rua da Praia que também é a Rua dos Andradas, ou o Parque da Redenção que também é o Parque Farroupilha. Poderia apresentar a obra literária de grande valor de Dyonélio Machado, de 1935, Os Ratos, que narra a jornada de um pai no Centro de Porto Alegre em busca de dinheiro para pagar o leiteiro e alimentar seus filhos. Uma descrição fantástica dos lugares e ruas da capital gaúcha, além de uma história emocionante. Enfim, apenas alguns exemplos do tanto que Porto Alegre tem a mostrar e que pode até ajudar a construir um sentimento de pertencimento, de orgulho e até de resgate da confiança frente a tantas notícias tristes que vivemos nos últimos tempos. Porto Alegre precisa muito disso. Este museu já é belo, pela intenção e por todo o resgate histórico e preservação do solar. Mas ele pode ser muito mais. Nós merecemos. Porto Alegre também.
O Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo fica na Rua João Alfredo, número 582, no bairro Cidade Baixa.
Todas as fotos, incluindo as feitas a partir das fotografias antigas disponíveis no museu, e texto: Juciéli Botton para Casa Baunilha
3 Comentários
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marco machado
Excelente trabalho, fiz anotações que vão me ajudar nos meu trabalhos. Parabéns.
Juciéli
Muito obrigada, Marco.
Fico muito feliz em poder contribuir!