Crônicas,  SÍTIO

As palavras mais bonitas que já ouvi vieram do homem que quebra pedras

– O que tu quer de Dia dos Namorados?

A pergunta do Bruno gerou espanto porque faz tempo que não nos afetamos com essas datas. Nos presenteamos no dia a dia. Mas não perdi a oportunidade e, sem dar tempo a ele para se arrepender, emendei:

– Os mourões de pedra rosa do nosso vizinho.

Temos um vizinho no sítio que possui mourões de pedra acomodados no chão em frente à propriedade, alguns cobertos com limo, esplêndidos, e desde que os vi visualizo a horta cercada e guardada por eles.

O único Sol que tivemos, em um sem fim de dias abafados pela bruma vinda do oceano, iluminou o caminho até a casa dele. Recobramos o humor, a vontade de viver, o brilho do sorriso. É hoje que veremos se o dono se importa em vender alguns.

Chegamos. Por cima da cerca, antes de terminarmos a primeira frase de saudação, ele estendia a mão para um aperto daqueles de cartão de visita. Quebra-ossos. Uma pessoa que recebe com gosto e alegria quem poderia estar trazendo até uma má notícia. Eu quero ser assim quando crescer.

– Aqueles mourões, o senhor estaria interessado em vender alguns?

Ao que o interlocutor responde pausadamente, como se puxasse nossos corações acelerados para fora para impor um novo ritmo, calmo e tranquilo:

– Presente da natureza, feito com amor, para nós.

E daí em diante, minha gente, eu precisaria ler todos os clássicos já escritos sobre a face dessa Terra, depois fazer um curso superior em Letras, um doutorado em Literatura, escorar milhares vezes milhares de horas de texto escrito sobre os meus ombros para, então, quem sabe, conseguir reproduzir o que esse homem fez com a nossa vida.

Nos calamos e deixamos os ouvidos trabalharem. A vontade era de não ver, ouvir e proferir nada depois dessa experiência, porque fomos modificados ali. Não fomos comprar mourões. Fomos encontrar um sábio.

Francisco, de baixa estatura e com uma pantufa de pelo verde, uma delas acomodando seu pé sobre um mourão deitado, gesticulava e apresentava sua sabedoria de vida como uma pessoa que recebeu aulas de oratória e ganhava a vida como o palestrante mais requisitado do mundo.

Os raios de Sol filtrados pelos galhos e folhas das árvores queriam chegar até ele. Parecia um ser encantado da floresta que veio tirar toda a nossa dor e tristeza e realizar todos os nossos sonhos.

Francisco é uma leitura dinâmica e animada de um livro de sabedoria. Eu, uma aprendiz e ouvinte que contava com a tensão superficial da água para manter as lágrimas no mesmo lugar de onde vieram.

Contou que para quebrar pedras na pedreira, atividade que exerceu dos 17 aos 32, é preciso, primeiro, ser pedreiro, depois ferreiro, porque a pedra é quebrada com ferro fundido na hora, mas, acima de tudo, ter amor no coração.

É preciso saber que a natureza está sempre nos conduzindo pelo caminho do amor. A própria ensinou isso a ele enquanto quebrava rochas, e graças aos ensinamentos dela, ele tem os pés e as mãos inteiros.

Inteiro era ele mesmo, íntegro. Francisco estava ali, naquele momento, conosco. O ontem não tinha mais, o amanhã não teremos. Só tinha aquele encontro acontecendo ali.

Disse que devemos olhar a todos com amor, independentemente de qualquer coisa. Dessa forma, a vida consegue ser o que é: bonita.

Que o homem que mata outro homem acaba com sua carne, mas não com a sua alma. “Só que tira a oportunidade da pessoa de fazer essa leitura” – Francisco abre os braços que flutuam sobre a fileira de mourões.

“Esses mourões têm um e noventa, um e oitenta, tirados com suor, lágrimas e amor. E calma, tem que ter calma. A natureza tem o tempo dela”.

Eu poderia dizer que ficou difícil voltar à vida usual depois do Francisco. A famigerada rotina do dia a dia, em que enfrentamos situações ruins e pessoas cuja humanidade está ausente.

Mas a verdade é que a vida ficou mais fácil. Eu estava mergulhada em dúvidas e hoje não as tenho mais. Estava triste e a dor desvaneceu. Senti que recebi o abraço de que precisava, o conselho pelo qual eu pagaria mas que não é precificável, a experiência “de milhões” cujas emoções instantâneas guardo na minha alma para sempre.

Francisco aprendeu a escutar a natureza quebrando pedras. Se tornou um sábio. A estante com todos os meus livros caiu e se espatifou no chão na cena que montei mentalmente. Aquele homem, em alguns minutos, resumiu a vida e provou que é tudo simples.

Eu vou praticar a autocompaixão e aceitar que não vou conseguir reproduzir tudo. Tem coisas que só na voz dele, naquele momento no tempo e no espaço, olhando para os olhos brilhantes dele, que às vezes pareciam embargar também, com o gestual dele, com a crença de cada um, com a luz refletida e o fundamental: a escuta.

Como disse Francisco: a natureza está aí para quem quiser ouví-la, aprender. Só que tem que querer. O Francisco estava ali para nos contar, e queríamos muito “fazer essa leitura”, queríamos muito ouvir.

Nos cumprimentamos e ele seguiu para dentro do seu terreno, o cachorro fiel acompanhando, o netinho também seguiu o avô, enquanto a esposa pendurava as roupas no varal de taquara. Ele volta a sentar em frente à casa.

E a gente volta diferente daquele rio, que no meio do curso tinha uma pedra. Ainda bem.

Fotos e texto de minha autoria, Juciéli Botton, para a Casa Baunilha.

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