Crônicas,  Vida e Carreira

Reflexões a partir da exposição Digo de onde venho, de Mariza Carpes, no MARGS

Sou diretora de arte publicitária, trabalho com design gráfico e também faço cerâmica. Para mim, a questão visual pesa muito, seja de um cachorro-quente ou de um filme. Pois o primeiro impacto que tive quando adentrei a exposição Digo de onde venho, de Mariza Carpes, foi o quão bonito e coerente estava o espaço, ou melhor, os espaços, pois a obra ocupa duas salas do MARGS. As cores escolhidas são muito agradáveis e sóbrias, a iluminação aconchegante e as centenas de itens eram organizadas magistralmente. Adoro exposições de arte que me fazem querer ficar por ali um bom tempo ou, ainda, perder a noção do tempo.

Perceber a estética visual ao redor aconteceu em um milésimo de segundo, seguido de um outro milésimo de segundo de “olha todos esses objetos, parece a minha casa!”.

Nesse momento, queria muito abraçar Mariza, dizer a ela “obrigada, você me entende”. E para você entender porque senti isso, precisamos entender a exposição de Mariza.

Mariza é filha de costureira e se criou em meio a botões, bordados, costuras e tecidos. Digo de onde venho é uma instalação em que a artista expõe todos os objetos que guardou, colecionou e cuidou desse universo até hoje, que contam sua história. Manequim, alfinetes decorados, barras bordadas, moldes de calçados, bonecos de pano artesanais. Há também criações belíssimas a partir desses itens, como os quadros em que ela brinca com colagens e sobreposições de fotos, tecidos e objetos que, no conjunto, parecem resumir a história de um familiar ou de um acontecimento. Pequenos altares, eu diria.

Tudo que sempre fiz na minha vida. Guardo em casa objetos muito afetivos, de uma bagagem pesadíssima e que, além disso, ajudam a compor o lugar que montei para viver no mundo.

Na medida em que vamos assimilando a história de vida que todos os objetos da exposição contam, cacos de vidro entre eles, mais entendemos que tudo bem querermos guardar e que dane-se o minimalismo hahaha.

Soa como um disco arranhado quando digo nos meus textos que estou constantemente tentando me livrar das tralhas que acumulei ao longo da vida. Umas tão importantes que até agora não entendi de onde tirei forças para me desfazer, outras que realmente não havia razão para permanecerem. Mas muitos itens nas prateleiras, móveis e armários continuam contando a minha história de maneira fiel. E Mariza parece que me ofereceu um abraço, dizendo “tá tudo bem, são as tuas coisas, a tua história, não tem problema. Mantenha. Permaneça. Transcenda ao lado delas”.

Ah, poxa, que culpa eu tenho se escrevo desde que me conheço por gente e acho muito importante, sim, guardar os jornais da minha cidade em que os textos que escrevi aos 14 anos eram publicados? Que culpa eu tenho se sempre adorei ler e tenho meus livros favoritos que vez ou outra retorno a ler e quero manter na estante como se fossem grandes amigos? Que culpa eu tenho se admiro a capacidade humana de reproduzir pessoas e itens em tamanhos menores e guardo minha Barbie de infância até hoje e também a família Simpson em forma de bonequinhos Lego? A Barbie, confesso, guardo também porque eu era uma criança que cuidava dos brinquedos. Gosto de olhar para ela e perceber o cabelo não-cortado e a cara não-riscada de canetinha.

Olho para todas as lembranças de viagem penduradas nas paredes, os objetos que ganhei com muito afeto e os itens guardados com todo cuidado e penso: “nossa, eu já vivi muito. Isso tudo que tem aqui conta, sim, uma história. Muita história”. É bacana perceber a nossa trajetória materializada e foi o que fez a exposição da Mariza.

É claro que a obra também nos leva a pensar nossa história para além dos objetos, fazendo pararmos por um instante em meio à rotina e realmente questionarmos de onde viemos e quais caminhos já percorremos. É um olhar para trás mas com afeto, com carinho para conosco, uma vez que esse exercício, por vezes, pode doer. Mesmo com alongamento e Dorflex.

O que me faz lembrar de uma frase cujo autor não lembro, mas que dizia assim: as únicas raízes que devem ser preservadas são as da mandioca.

Libertador, sim? Noto uma certa pressão hoje, nos discursos, em praticamente todas as mídias, que temos que enaltecer, viver e perpetuar as nossas raízes. Acho que isso não pode ser uma regra, enquanto limitador, condicionante, prisão. Adoro a frase da mandioca porque, às vezes, aquele 1% que nos falta para atingirmos a paz de espírito plena é cortar de vez algumas raízes. Acho importante saber de onde viemos para nos entendermos melhor e, uma vez conseguido descobrir do que somos feitos – tarefa dificílima – então podemos replantar as mudas da nossa vida e começar a regar e a cuidar de uma nova raiz, caule e folhas.

Sob esse aspecto, desapegar de alguns objetos pode ajudar no corte da raiz, na libertação. Mas, ainda assim, olhar para a nossa história com afeto e generosidade pode nos tornar árvores de múltiplos frutos.

Todas essas montagens com itens do passado, além de esteticamente belas, também me fizeram pensar em nossa criatividade, na capacidade que temos de criar memórias. Muitas das nossas lembranças, digo, um bocado da nossa história, é costurada com uma linha que nós mesmos escolhemos, sobre um tecido que nós mesmos tecemos. Escolhemos a cor, a textura, e tudo se amarra de tal forma que já não sabemos se nossa história aconteceu mesmo do jeito que contamos. O próprio título da exposição sugere isso, pois não é o lugar, nem meus pais, nem ninguém que diz mas, sim, eu digo de onde venho.

Um viés de pensamento sobre sermos livres até mesmo na maneira que contamos nossa própria história, jeito esse que pode ser mostrado tanto no feed quanto na nossa privacidade, para nós mesmos, no filminho que projetamos sobre a parede do córtex pré-frontal.

Aliás, há pensadores que dizem que chegaremos em um ponto da vida em que lembraremos de nossos momentos somente a partir do que está no Instagram, e não como eles realmente aconteceram. Neste caso, me parece que manter os originais, isto é, as sensações e impressões, é interessante para essa busca por nós mesmos, para o entendimento de nossa história e, dessa forma, percorrermos trilhas mais esclarecidas acerca do que queremos.

Dizem que vive mais quem tem uma boa saúde e uma péssima memória. Porém, mais uma vez, que memória é essa?

Talvez, nossa estimada “tralha” possa nos dizer.

A exposição Digo de onde venho também mostra quadros, pinturas, vídeo, áudio e ilustrações de Mariza Carpes. E fica aberta até 15 de março no MARGS, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, que fica na Praça da Alfândega, no Centro Histórico de Porto Alegre.

Fotos e texto de minha autoria, Juciéli Botton, para a Casa Baunilha.

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