Os teus falecidos também ficam mais presentes a cada dia? Duas mulheres incríveis e que muito me ensinaram, embora não estejam mais nessa vida, me acompanham em cada momento do meu dia como verdadeiras mentoras. A Celia, minha sogra, e a mãe do meu pai, a vó Ignez. Elas devem ter se visto duas vezes na vida e tinham a mesma qualidade invejável, admirável e por demais bem-vinda, ainda mais nos dias de hoje: se harmonizavam com as pessoas e os ambientes, onde quer que estivessem.
Elas estavam sempre bem, não importava o quê. Essa integralidade delas desperta fascínio em mim. Eram seres humanos inteiros em qualquer situação.
Tenho a impressão que minha sogra mais sobreviveu do que viveu, tantas foram as agruras pelas quais passou. E mesmo assim, não teve um dia sequer em que nos encontramos que ela não estivesse de braços abertos para me receber. Não é figura de linguagem, ela abria os braços mal o nosso carro parava de estacionar. E assim ficava até finalmente nos abraçarmos. Sempre, sempre, sempre sorrindo. Uma pessoa de riso fácil. Quem conhecia seu dia a dia admirava o sorriso que ela vestia todos os dias.
Minha avó nunca falou mal de pessoa alguma e nunca trouxe assuntos de mal gosto aos nossos encontros. Era uma pessoa de discutir ideias, abordar assuntos sobre os quais tinha lido – ela lia bastante –, conhecimentos e todo tipo de informação que pudesse nos ajudar na vida. Era a Madre Teresa, pensava nos demais e ajudava sempre que podia – e quando não podia. Também passou por poucas e boas e, mesmo assim, sempre enxergava o lado bom das situações e pensava de forma positiva.
Essa qualidade de criar um ambiente agradável enquanto na companhia de outros seres humanos, de se harmonizar com outras vidas presentes, apesar de tudo, é de uma beleza daquelas que de tão inexplicáveis, a gente nem quer roubar para si. Queremos que fique onde está para que contemplemos.
Por isso constituem modelos a serem seguidos. Penso nelas todos os dias. Quando a situação começa a desandar, lembro que a Celia e a Ignez fariam assim, agiriam dessa forma. Diriam… nada, ficariam em silêncio, apenas um singelo sorriso.
Nos meus estudos sobre filosofia e comunicação não violenta, deparei com algumas ideias que vão ao encontro desse comportamento sábio e que admiro nas duas. Ou seja, não tem mistério nem nada de modismo, apenas aprenda com os mais velhos.
Uma dessas ideias nos ensinam quando crianças, mas o modo de vida hoje não fomenta esse tipo de sabedoria: se você não tiver algo legal para dizer, não diga nada. Perdemos a noção do que é digno, correto, educado. Afinal, vivemos na era em que um site, que se comunica com o mundo, nos pergunta: o que você está pensando? E a gente cai direitinho.
Outro ensinamento é não trazer os problemas à tona (até porque, o mundo não é só sobre você). Além de evitar transformar a energia do ambiente e do momento em vibrações baixíssimas, faz a intimidade ficar resguardada. Outra coisa que já não sabemos mais o que é: intimidade. Aquele lugar onde experimentamos situações e desenrolamos sentimentos. Um tubo de ensaio onde nos permitimos errar, processar, reorganizar, nos refazermos, mudarmos de ideia, tentarmos, mudarmos de ideia de novo. É onde largamos as cascas que esprememos dos acontecidos para extrair o suco do aprendizado. É, também, onde devemos deixar essas cascas. Ninguém sai com casca de laranja por aí na bolsa. E assim nos permitimos crescer para então nos apresentarmos ao convívio social, onde vamos criar e sustentar um ambiente agradável e acolhedor para todos, inclusive para nós mesmos. Dessa forma, não ficamos estigmatizados com as ideias desagradáveis que temos o vício de colocar para fora.
Também tem a ideia da pirâmide, que é muito fascinante. E o que é a pirâmide? Um elemento de base larga que na medida em que ganha altura, estreita, até culminar em uma ponta onde todas as faces convergem. Pois quando caminhamos para cima, para a sabedoria, para o lugar de elevação da consciência, nos afastamos do chão e nos aproximamos, não apenas do topo, mas também do outro ser humano que vem caminhando para o alto na outra face. Ou seja, quando nos afastamos do outro é sinal de que estamos descendo a pirâmide. Indo ladeira abaixo, para usar uma expressão popular. Entramos em um processo de embrutecimento, vibrando baixo, quase como uma cadeira. Isso não quer dizer que devemos ser melhores amigos de todas as pessoas, mas pelo menos nos harmonizar com elas, respeitando-as. Um violoncelo nada tem a ver com um pandeiro, mas podem se harmonizar perfeitamente em uma bela sinfonia, diante da batuta do maestro. Quando estamos harmonizados com sentimentos e valores elevados, estamos em harmonia e equilíbrio com os demais e com tudo a nossa volta.
As duas eram guardiãs desses ensinamentos, que não são explicados nem chamada a atenção para eles. São colocados em prática no dia a dia, em silêncio. Quem tiver a sensibilidade de absorver os exemplos, conseguirá fazer tentativas ao topo da pirâmide.
Poderia escrever sobre as qualidades das duas para sempre, pois eram muitas, as quais me ajudam em todo tipo de situação. E também eram boas ouvintes, honravam o princípio de termos dois ouvidos e uma boca. Se doavam e doavam o seu tempo a ouvir os outros. Tempo. Tempo é vida. Doavam seu tempo de vida.
E por falar em tempo de vida, antes de iniciar estudos na área de filosofia por conta própria e de fazer cursos, estava muito insatisfeita com o modo de vida simplório que levamos hoje. Corremos atrás da roda (da fortuna) e amenizamos as dores comendo e assistindo on-line ao passar do tempo, de vida. Um cenário muito triste. A vida, dessa forma, se esgotou pra mim. Quando decidi que ia plantar a minha comida aconteceu exatamente como na frase: a agricultura é a cultura do ser humano. Na medida em que me aproximei dos processos naturais e fui trabalhando junto com a natureza, fui trabalhando a mim mesma. Comecei a estudar filosofia e as tradições milenares para trazer sabedoria para o dia a dia. Foi assim que a agricultura me levou ao conhecimento que deveria estar sendo passado para as pessoas e que se perde mais e mais.
Hoje a nossa “tradição” é copiar o lifestyle de outras pessoas que mal conhecemos. Percebi o tanto da vida que estava perdendo e quantos talentos em mim eram desperdiçados. O modo de vida atual é um verdadeiro rolo compressor de talentos, incluindo o de exercer a nossa humanidade.
Manter o espírito de aprendiz por toda a vida é um dos ensinamentos – e talentos – que a vó Ignez passou sem que me desse conta e faz toda a diferença na minha vida. Me salva de muitos males e faz eu me tornar o indivíduo que sou. Indivíduo, aquele que não está dividido, um todo reconhecível, um inteiro. O jeito que se vive hoje nos deixa segmentados, desfacelados, não íntegros. E ter um referencial de ser humano íntegro, isto é, inteiro, é de suma importância hoje – e sempre.
Nossa sociedade sofre quando não reconhecemos os bons mentores, porque eles estão aí. Com certeza você deve ter os seus, vivos ou mortos – que muito provavelmente não passam pelo seu feed ; )
Foto e texto de minha autoria, Juciéli Botton, para a Casa Baunilha.