Crônicas,  Vida e Carreira

Você é a sua melhor versão quando viaja?

Li esta frase em um texto da Gaía Passarelli que, por sua vez, ouviu de um escritor de viagens: você é a sua melhor versão quando viaja? E ficou ecoando em mim. Nunca tinha pensado sobre isso. Simplesmente viajava.

Então, passei a refletir sobre. Percebi que a questão toda já começa no fazer as malas. Fazemos as malas querendo ser outra pessoa. A Ellen DeGeneres, em seu último stand up, Relatable, do Netflix, falou em “uma personalidade fantasiosa que temos quando viajamos”. Uma pessoa que lê três livros em menos de uma semana, por exemplo. Quem nunca? Já levei quilos de leitura de que não senti nem o cheiro. A fantasia contagia até o jeito de nos vestirmos. Já montei mala para uma Juciéli muito a fim de usar um macacão como nunca antes visto. Já organizei nécessaire recheada de artefatos para prender um cabelo que é dono de si e que está sempre ao sabor do vento e da poluição. Não duro muito tempo com meu cabelo preso e ajeitado. Preciso passar a mão nos fios e transferir tudo que a vida depositou nela nas últimas horas.

“Vou malhar, vou ler muito e corta pra você sentado num bar usando a mesma roupa a viagem toda” visualizou a Ellen. Na real, não demorei para perceber que uso a mesma roupa a viagem toda. Confesso que aprendi rápido esse negócio. Minha mala carrega um uniforme. No caso, faço a mala para ser Steve Jobs, minha personalidade fantasiosa, uma vez que calça jeans e camiseta é meu uniforme. Na verdade, ele seria minha personalidade já resolvida, porque fantasiosa teria de ser uma que exibe salto alto e postura espinhal impecável.

Passando de mala para comportamento, na questão da educação como transeunte: atravessar na faixa, por exemplo. Às vezes, consigo ser uma má pedestre na minha cidade. E quando andei por São Paulo pela primeira vez, fui eu mesma. Alguma rua perto da Paulista, sinal aberto para veículos e Juciéli tentando atravessar. Na faixa, sim, mas na hora errada, enquanto os paulistanos aguardavam o sinal abrir para pedestres. Me senti a pior das piores. Voltei falando da educação daquele povo, enchi a bola deles. Só para retornar um dia e quebrar a cara. Todos atravessando quando não deviam. Tudo culpa minha, dei mau exemplo. Porém, já no primeiro contato, eles me educaram. E esse é um ponto interessante sobre viajar, quando a cultura local consegue te transformar, para melhor, extinguindo vícios. Entretanto, isso só acontece quando estamos abertos às mudanças. Portanto, permitir que nos corrijam, seja na maneira de conduzir uma situação, seja num pré-conceito, ou no jeito que se leva a vida ou, ainda, nos valores, é um requisito para sermos nossa melhor versão quando viajamos.

Mas não posso ser cruel comigo mesma. Há momentos em que consigo trazer à superfície o meu melhor. Já esqueci a bateria da máquina fotográfica no apê e só percebi quando cheguei em frente ao mural do Kobra no cais do Rio de Janeiro. Mirei no desenho e a máquina não fazia o “click”, e era só o começo de um dia todinho entre as maravilhas do centro da cidade. Quis me jogar da ponte Rio-Niterói? Sim. Deu vontade de voltar até Copacabana para buscar? Não, porque estava com meu marido e em respeito a ele e a mim mesma, não suportaria uma coisa dessas. Aproveitamos o dia sem a máquina melhorzinha, clicando com o celular mesmo, do jeito que deu. Foi um aprendizado e tanto e um grande feito em consideração ao outro ser humano com quem se compartilha uma viagem.

Também me voluntario como fotógrafa particular e clico as pessoas, em momentos não esperados. Fotos “conceituais”, como diz minha irmã. O pessoal reclama que tiro muita foto mas depois fazem a festa no Instagram. Obrigada, de nada. Adoraria ter alguém atrás de mim com uma câmera registrando tudo que faço. Claro que as fotos em que não me gosto, que totalizam 99% delas, eu deletaria. Isso foi outra coisa que aprendi enquanto viajante: não criticar o fotógrafo porque ele não tem culpa da minha genética – a não ser que os fotógrafos configurem meu pai e minha mãe. Brincadeira.

Coisa que não faço mais é postar os acontecimentos (os não-acontecimentos) da viagem nos stories do Instagram. Em respeito aos presentes, no caso eu e a outra pessoa ou demais pessoas. Aproveito o momento na sua totalidade e isso faz toda a diferença. E essa diferença é paupável, enorme. Sou bem mais feliz fazendo isso e relaxo completamente.

Aprendi, também, a ser mais flexível com os roteiros. Por exemplo, não fui ao MAM no Rio, museu que mais queria conhecer, mais que o Do Amanhã, porque meu marido estava cansado de tanto ver coisas e queria ir à praia. E à praia fomos. E na praia ficamos. E foi ótimo. Acabei fotografando um quadro mais bonito do que os dos museus, o da pintura que se cria durante o pôr do sol na praia de Copacabana.

E digo mais: a própria mudança de planos injeta ânimo nas veias. O próprio se dar conta de que somos capazes de lidar com um imprevisto faz bem para a pele. Recomendo.

Uma questão que tento melhorar é procurar “não procurar” muito sobre o lugar, para que haja o encantamento, a surpresa e a criação de uma opinião sobre a coisa experimentada isenta de qualquer influência. Gaía escreve sobre este tópico elegendo a autoimportância como o pecado mais comum do viajante, apoiado numa visão “surpreendentemente enviesada dos lugares por onde passa”. Então, ultimamente, estou viciada em primeiras vistas e reações virginais com os espaços.

Noto essa característica em apresentadores de programas de viagem. Tem o italiano que já rodou o mundo, é chef, mora na Europa e que, mesmo assim, mantém aquele encantamento de criança descobrindo a vida, aquele brilho no olhar que não se apaga nunca diante de um tempero que não conhecia, de um lugar sobre o qual nunca colocou as vistas, ou, inclusive, onde já esteve. E tem o apresentador brasileiro que mora fora e que faz cara blasé em qualquer lugar incrível ao que ele tem a oportunidade de ir. Um tipo afetado.

Só sei que, para ser a minha melhor versão quando viajo, preciso ficar de boca aberta, me maravilhar, não saber o que esperar, nem como reagir. Não saber o que dizer e nem do que se trata. Viajar para confirmar teorias, atestar o boca a boca e replicar imagens não parece ser a minha melhor versão – nem a melhor visão.

Estar diante de olhos nunca antes fitados e que provavelmente nunca mais serão vistos parece o pano de fundo perfeito para relaxarmos e aproveitarmos ao máximo a viagem. Um extravasamento do eu que reprimimos diante de nossos familiares, companheiros e até amigos e que ainda pode ser uma parte melhor de nós. Em contrapartida, talvez seja o grande escape para nosso pior eu, aquele egoísta e antissocial, que também reprimimos diante de pessoas que sempre voltamos a ver.

Escrever sempre foi um esporte. Me tranquiliza, me organiza, é a minha terapia. E notei que quanto mais escrevo sobre o que vi e experimentei em viagens, mais exercito a autocrítica e entendo aquilo que vi, os lugares, as pessoas, os costumes. Parece que, enquanto viajo, fico em estado de esponja. Absorvo ao máximo e reajo da forma mais crua. E quando escrevo, ou converso com o meu marido, por exemplo, processo as informações e então vou me dando conta do que realmente aconteceu, o que verdadeiramente significou aquela experiência. E esse pós-viagem é o que prepara uma versão minha, melhorada, para a próxima – e para o que está por vir na vida.

De uma maneira geral, sei que posso melhorar muito como viajante, mas também posso me orgulhar do que consegui exercitar e conquistar até agora, os novos hábitos, a consciência, a generosidade, o pensar no outro.

Fotos e texto de minha autoria, Juciéli Botton, para a Casa Baunilha.

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