Crônicas,  Vida e Carreira

Um alien por dia

Senta que lá vem análise semiótica. E spoilers. Portanto, se tu ainda não assistiu ao primeiro Alien, de 1979, assista primeiro e, depois, vem correndo aqui pra gente bater um papo.

Alien: O Oitavo Passageiro, de 1979, não é um filme sobre aliens, mas sobre mulheres desacreditadas que precisam limpar a bagunça dos outros depois, com todo o direito de encherem a boca para falar: eu avisei.

Como assim, Juci? Com tantas plataformas de streaming disponíveis, séries incríveis, personagens femininos contemporâneos, você vai desenterrar Alien agora, em 2021?

Vou, sim, porque: 1) eu não saio, sou uma das 12 pessoas que fazem isolamento social no Brasil durante a pandemia (no máximo, vou à casa dos meus pais) e ficar em dia com os clássicos é um dos passatempos; 2) filmes como o Alien de 1979 são atemporais e estão carregados de entrelinhas que nos ajudam a ler os dias de hoje; 3) semiótica é um negócio bom demais.

Quando o primeiro Alien foi lançado, em 1979, com o subtítulo O Oitavo Passageiro no Brasil, eu nem era nascida. Comecei a entender que o filme existia ainda muito guria, então nunca me interessei porque tinha medo e nojo ao mesmo tempo. Mesmo se tivesse idade para assistir na época, não teria a visão que tenho hoje.

Para meu espanto, Alien é menos sobre vida alienígena e mais sobre ser mulher em um mundo estritamente masculino. Opa, pelo jeito é, sim, sobre vida alienígena hahaha.

De fato, o filme é sutil no que diz respeito a mostrar a criatura em si. Me fez lembrar de Stranger Things, em que o bicho do mundo invertido não se revela totalmente na primeira temporada. E, da mesma forma que a série, a saga de Alien torna cada vez mais explícita a criatura na medida em que os demais filmes são rodados.

Portanto, Alien: O Oitavo Passageiro tem muito pouco de alien, deixando sobrar espaço para questões filosóficas, imagéticas e signos.

A mulher é o centro da trama. Ellen Ripley, interpretada pela rainha da ficção científica Sigourney Weaver, é a grande heroína que evita, sozinha, que uma raça alienígena chegue à Terra. Destaque para o fato de que a cultura americana dá poder a seus cidadãos, da realidade à ficção, pois de Independence Day a Erin Brockovich é o americano comum que salva o planeta, a causa. Em detrimento de nós, brasileiros, que esperamos do poder público a saída para tudo e a justificativa por nossos próprios atos.

Mas até atingir seus dias de glória, Ripley terá sido calada, desacreditada, violentada. As péssimas ideias e ações tomadas pela tripulação ficam por conta dos homens. Na obra de Ridley Scott, a mulher é o ser sensato e resiliente.

Em uma caminhada pelo habitat do alien, a intuição feminina da personagem Lambert fala o tempo todo: vamos sair daqui. Mas seu colega insiste em avançar até que sofre um ataque.

Ao retornarem à espaçonave, tentam entrar de qualquer jeito para salvar o colega. Mas Ripley quer seguir todos os protocolos da quarentena para não colocar o resto da tripulação em risco. Só que o oficial de ciências, Ash, não quer nem saber e manda eles entrarem. Resultado: colocam a criatura para dentro da espaçonave.

Mais adiante é revelado que Ash é um androide e que não estaria dando a mínima para vidas humanas e, sim, programado para levar vida extraterrena à Terra. Diferente da androide Rachel de Blade Runner, tão humanoide que nem acreditava que ela própria era um replicante ­– mais uma obra de Ridley Scott e um dos meus filmes favoritos.

Se, por um lado, Alien mostra o universo machista sufocante, por outro os personagens masculinos são desenhados como idiotas e inconsequentes.

Aliás, é possível construir uma baita tese sobre produções audiovisuais que reduzem os homens a atitudes mirins. Lembrei de Friends, uma das séries de maior sucesso desse planeta, em que os personagens estampam 30 anos na face mas se comportam como quinta série.

O colega que no mais tardar se revela um androide simboliza a mecanicidade do comportamento padrão que é ensinado aos homens, inclusive de força, porque replicantes possuem força sobrenatural, de atravessar paredes.

As mulheres são constantemente espreitadas pelo perigo, pela dor. O alien em si representa esses perigos aos quais as mulheres devem estar sempre alertas. Como a violência sofrida por Ripley vinda do colega androide. E tanto Ripley quanto Lambert não são ouvidas nas tomadas de decisão.

Depois de uma série de más escolhas, todos morrem, sobrando apenas Ripley. Em uma das cenas finais, quando sente que está segura e pronta para, enfim, voltar à Terra, faz o que qualquer pessoa faria depois de um dia difícil: retira os calçados, as roupas suadas e fica à vontade, com seu pet de estimação. Quando nota o que já era de se esperar, a presença do alien, se movimenta sutilmente, espiritualmente, eu diria, veste o traje espacial para então conseguir lutar contra a morte.

Essa questão da pouca roupa me lembrou tantas heroínas, como a Mulher Maravilha, Shee-ra etc. Como você salva o planeta de saia e ombros de fora? Já pensou se esfolar toda no asfalto? Queimaduras? Cortes?

Também lembrei da Sandra Bullock em Gravidade. Vestia apenas short e top antes de ter que encarar a grande epopeia de voltar para casa. E, de novo, uma mulher. Só que ela não tinha nem um gato para lhe fazer companhia.

Não entrarei na questão da exposição do corpo feminino mas, independente de ser usado para promover o filme ou não, a questão das roupas íntimas em mulheres que precisam lutar muito para sobreviverem está sempre inserida na mesma narrativa: a mulher em seu estado mais confortável até que, de repente, a realidade as faz dar um salto para uma bruta realidade. Quantas mulheres estão dentro de seus lares, ao lado de pessoas que as fazem se sentir seguras e, do nada, recebem uma agressão ou até mesmo abandono?

Mas nem só de questões relacionadas à luta das mulheres vive Alien: O Oitavo Passageiro. Outros detalhes cinematográficos chamam a atenção. Como a cena presente em 99% dos filmes: a galera toda em torno da mesa, comendo, câmera travelling circular em torno dos personagens. Vemos em Matrix, quando Neo prova sua primeira papinha de nenê. Ah, e a cena sempre vem acompanhada de um papo tirador de sarro de algum colega da tripulação. Momento descontração que precede a sequência de desgraceira que está por vir.

No topo, a tripulação de Alien: O Oitavo Passageiro e, abaixo, a de Matrix. A comida sempre unindo as pessoas.

Em Alien, assim como em muitos outros filmes, ainda há o elemento fumaça de cigarro no ar. O cigarro no cinema é signo de muita coisa. Já foi item indispensável para construir o personagem descolado. Depois o mau. Em Alien, ressalta o relaxamento de alguns personagens frente à gravidade da situação, como conduzir um cargueiro de minério pelo espaço.

O cigarro reforça o quão corriqueira era essa operação no ano de 2122. Que o diga o personagem de Samuel Jackson em Jurassic Park. Durante a tentativa de evitar que as crianças sejam comidas pelo T-Rex, não deixa o cigarro cair da boca enquanto fala. Demonstra que está familiarizado com o sistema operacional. Poderia, também, significar nervosismo. Mas não é o caso.

A cool Mia Wallace de Pulp Fiction, o desencanado Ray Arnold de Jurassic Park e a senhorita Mamba Negra, bastante à vontade com a maldade em Kill Bill: Volume 2.

Ainda no campo dos vícios, nos anos 1970, os atores que representavam astronautas nada tinham a ver com os que vão ao espaço hoje. Atualmente, antes de exibir alguns diplomas é preciso ser atleta. Não é o caso da tripulação da Nostromo em Alien. Inclusive, os personagens chão de fábrica da operação, que pouco conhecimento têm sobre o que se passa e só estão preocupados com o pagamento, têm seus papeis assim desenhados para dar a entender que extrair minério em outros planetas é uma operação tão comum para a época que até quem não é astronauta embarca.

A cena mais emblemática, talvez, seja a do “parto” do alien. Um ser estranho se apossa de um dos homens e, depois do personagem “comer por dois” na mesa do café, o bebê alien está pronto para nascer. A luz que incide sobre o personagem lembra a de uma mesa cirúrgica. Lembrando que o alien não sai da barriga como muitos dizem mas, sim, do tórax.

Particularmente, uma das cenas mais incríveis é a do androide tendo sua estrutura exposta e, depois, reativado, com a cabeça apoiada sobre a mesa, para que fornecesse algumas últimas explicações que pudessem salvar a tripulação. Tanto o boneco quanto a sequência, muito bem construídos. O gênero da ficção científica só ganhou com a cena.

Há muito o que descobrir nas entrelinhas de Alien, o Oitavo Passageiro. Há quem analise sob a ótica da maternidade. E parece que o escritor nunca escondeu que o filme é uma grande metáfora de um estupro masculino. Ou, em outras palavras, da vulnerabilidade dos homens. Digo “parece” porque não quis me aprofundar sobre para não influenciar o que senti e visualizei.

Uma questão me incomoda no filme, mas tecnicamente falando. Senti falta de planos detalhe e sequências melhor cadenciadas, principalmente em cenas de ação intensa e de decisão da trama, como numa das últimas, quando o alien é sugado para fora da nave. Foi tão rápido que nem sei direito o que aconteceu. Falta esse plano detalhe no botão que a personagem está prestes a apertar, nos olhos da pessoa fitando alguma alavanca.

Alfred Hitchcock e sua arma chegando antes do ator na cena, sequência exaustivamente copiada pelos filmes que vieram depois até os dias de hoje; plano detalhe do botão apertado no traje espacial em 2001: Uma Odisseia no Espaço; plano detalhe de um olhar muito do atento em Três Homens em Conflito.

Já notei essa ausência de clareza em vários filmes. Aproveitam a iluminação escassa da cena para encobertar efeitos, o que, por vezes, encoberta até o que aconteceu.

Coisa que não vemos nos filmes – bons – de hoje. As narrativas são tão ricas em detalhes que não entender de onde partiu a ação e o que aconteceu não é um caminho.

Que diga nós, mulheres. Temos dado tanto enfoque para nossas ações e necessidades que não deixamos dúvida do que é preciso para uma sociedade com mais escuta, respeito e oportunidades.

Um abraço apertado a todas as Ripleys que dominam um leão por dia. Digo, um alien por dia.

Fotos: Reprodução | Texto de minha autoria, Juciéli Botton, para a Casa Baunilha.

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