Revi Mulheres à beira de um ataque de nervos, um dos filmes que tenho em casa e percebi que, mais do que nunca, precisamos ser Pepa. Interpretada por Carmen Maura, Pepa é mais que uma personagem, é uma heroína e isso não fica claro para muitos espectadores.
O título do filme contribui para a cortina diante dos olhos. Para quem não conhece a obra de Almodóvar, entendedora da mulher – segura essa, Freud –, o filme pode parecer tratar de mulheres simploriamente “atacadas”. Até quem é fã do diretor pode não perceber o quão preciosa é a personagem.
Pepa é largada pelo amor de sua vida via mensagem na secretária eletrônica, descobre que está grávida e tenta a todo custo falar com o cara, que foge dela pelas ruas de Madri como um covarde de primeira categoria. Ah, uma amiga se esconde em seu apartamento depois que o namorado se revela um terrorista xiita.
Pepa só vê crescer o novelo de dificuldades que envolve sua vida. E entre um apartamento quase pegando fogo – que ela apaga com a mangueira do jardim com a mesma tranquilidade de quem lava a louça – e um gaspacho envenenado com comprimidos para dormir, ela troca de roupa, retoca a maquiagem e parte para a batalha.
Apesar de tudo, Pepa dá uma lição de comportamento resiliente e determinação.
Todos nós precisamos ser um pouco como Pepa neste momento pandêmico, em que não somente temos de lutar contra algo que supera o que já sabemos a cada dia e que foge de nossas forças e intenções como também contra os problemas que o ser humano mesmo provoca porque sente um prazer sádico em instabilidades políticas.
Mas Pepa não enfrenta a batalha com aquele heroismo fantasioso de mocinha. Ela luta como um dos melhores exemplares de ser humano sofredor: o que não vê outra saída a não ser ir para frente. Sem reclamar, choramingar nem “deixando a vida levar”. Pelo contrário.
Pepa parece rebolar dentro de um bambolê, deslizando sem barulhos entre a polícia que invade seu apartamento, o filho do amante que surge do nada para comprar seu imóvel e diante do revólver apontado para sua testa. Pepa enfrenta tudo como uma lagosta de Jordan B. Peterson – vide 12 Regras para a vida.
Não deve ser fácil acordar e descobrir que o amor da tua vida, pai do teu filho que está a caminho, terminou contigo por meio da secretária eletrônica. Da mesma forma que não foi fácil saber que um vírus letal e global estava a caminho depois que um médico foi preso por tentar alertar o mundo.
Do outro lado do oceano, em uma ficção americana, Berger, namorado de Carrie em Sex And The City, termina o namoro de forma parecida, mas por meio de um Post-it. E na manhã após ter dito que a amava. Ela lidou com isso vomitando um discurso no amigo do ex e fumando maconha. E fica grata, à meia noite, por aquele dia ter terminado como o dia em que foi presa por fumar um baseado em vez do dia em que levou um pé na bunda via Post-it.
Já Pepa termina o seu dia – regado a abandono, gravidez recém descoberta, terroristas xiitas, tentativa de homicídio e polícia inquisidora – grata por ter salvo a vida do homem que amava, apesar de tudo. É como a moral da história no fim do conto infantil: por mais sem saída, caótico e sem sentido que pareça o rumo que a vida toma, fazer a coisa certa ainda reluz como o caminho que dói menos quando pensamos a respeito enquanto deitamos a cabeça no travesseiro.
É o que tento fazer hoje, em que lidar com diferentes interpretações de isolamento, distanciamento e cuidados divergem. No meu entendimento, não ver as pessoas da minha vida com tanta frequência está as protegendo – e a mim. Mas na medida em que percebo o que parece a retomada de uma vida normal não consigo evitar a sensação de que estou sendo passada para trás, feita de boba, além do entendimento de que devem estar me julgando como insensível, ingrata, distante.
Nada mudou desde o dia em que deixaram um bilhete debaixo da nossa porta dizendo que poderíamos morrer ou perder pessoas que amamos. Não há vacina e nem sabemos se as que estão em curso terão uma imunidade efetiva e duradoura, enquanto divulgam sobre as dezenas de milhares de variações do vírus.
Sinto que são tempos bem nebulosos nesta questão dos relacionamentos e sentimentos ligados às pequenas ações do dia a dia. Alguém mais ou estou sozinha nisso?
Apesar dos pesares, saúdo a personagem de Almodóvar como um Norte para que eu consiga equilibrar todos os pratos sem nenhuma quebra. E para que eu não ultrapasse a beirada de um ataque de nervos.
Foto:Reprodução | Texto de minha autoria, Juciéli Botton, para a Casa Baunilha.