A estante da sua vida tem quantos nichos? De quantos espaços você precisa para acomodar assuntos, pessoas, sonhos, planos que fazem você ser você? Quais tópicos ficam na altura dos teus olhos, ao alcance das mãos, e quais você coloca nas prateleiras lá de cima, porque prefere nem pensar muito sobre?
Esses questionamentos e reflexões do âmbito filosófico me ocorreram graças a, veja só, algo da ordem prática, burocrática e concreta.
Em miliquinhentos, meu avô mandou fazer uma estante com 50 nichos. Como ele chegou aos 50 nichos? Listou os assuntos documentados que constituíam a vida dele, tais como pagamentos do INSS, documentos da casa, contas pagas, papéis dos funcionários, documentação da empresa etc. Depois calculou a quantidade de pastas necessária para arquivar todos esses papeis e chegou ao redondíssimo número. Os 50 nichos dariam conta da vida de um homem trabalhador e pagador de seus impostos – além dos de outros membros da família.
Décadas se passaram e o visual bacana da madeira acabou escondido debaixo de arquivos sem graça, nunca consultados, e muito pó. Eu olhava para a estante e visualizava um destino vívido para ela, vestindo o colorido das lombadas dos livros e o verde das plantas, expandindo assim, a gama de moradores dela. Ela se tornaria um condomínio de histórias e vida. Se essa estante, se essa estante fosse minha […].
E ela acabou sendo. Propus uma troca com o meu avô e ele topou na hora. Ofereci minha estante de livros daquelas de ferro, em que podemos adaptar a altura das prateleiras, em troca da estante de 50 nichos. Ele ficou feliz por ter me interessado por “aquilo”, como ele chamou, comentando que havia muita coisa na estante dos nichos que poderia ser descartada.
A energia por ali estava estagnada ao passo que a estante ainda tinha muita lenha para queimar, como diz o ditado. Ela tem cupim, volta e meia surge o pozinho característico, por isso ainda vou providenciar para que seja eliminado.
Minha avó me deu uma das suas suculentas como presente de casa nova. A planta foi a primeira a arborizar a estante. Depois vieram o coraçãozinho de mãe (dado pela minha mãe) e a jiboia.
Os livros estão chegando aos poucos, pois trazemos do apartamento apenas alguns por vez, mas é visível a vocação da estante de 50 nichos para expor o colorido dos livros e a beleza botânica.
Adoro ela porque não é somente uma estante. Ela representa muita coisa. A perseverança do meu avô, que quando jovem tinha que trabalhar de dia para jantar à noite. E ele conseguiu prosperar.
Sempre foi muito ligado aos números, fazendo conta para tudo, seja para calcular quantas cebolas a família comeria durante um ano inteiro, para planejar o plantio, seja quanto as enfermeiras do hospital deviam ganhar por horas extras – uma consultoria que ele fazia de graça. Aos 94 anos, ele continua fazendo contas. Escuta a notícia no rádio e começa a fazer cálculos sobre o aumento da gasolina. Pergunte a ele quantos quilômetros rodou em 1972 (escolha um ano qualquer), como caminhoneiro cruzando o Brasil, ele vai te dizer. Pergunte o que aconteceu com ele em qualquer idade, ele vai te dizer.
Eu não sei, de bate-pronto, quantos anos eu tinha na sétima série. Preciso fazer uma conta. O que eu almocei no sábado passado? Peraí, preciso esquentar os motores, revirar as gavetas da memória e, talvez, eu encontre os dados. A estante lembra de me esforçar para não ser uma pessoa apenas de humanas, mas também atenta aos números e a estimular a memória.
Também gosto de olhar para a estante e pensar no processo de desapego, de mudança, de troca, de renovação, de ficar apenas com o que serve para nós naquele momento de vida.
E falando em vida, vamos lá, porque eu não esqueci: quantos nichos tem a estante da tua vida? Quais assuntos ficam na altura dos teus olhos, ao alcance da mão e quais você coloca nas prateleiras lá de cima, porque prefere nem lembrar?
É para pensar.
Até a próxima ; )
Fotos e texto de minha autoria, Juciéli Botton, para a Casa Baunilha.