Crônicas

Você pegou a sua vida de volta? Sobre professoras incríveis, escrita e reflexões sobre a vida

Tenho professoras muito importantes na minha vida. Me incentivaram tanto durante o período escolar que sigo escrevendo até hoje. Por isso o tempo verbal. Não digo que tive mas, sim, que tenho professoras incríveis na minha vida.

A professora Sandra Behn nos fez escrever dezenas de redações nas aulas de Português. Lembro do primeiro dia com ela. Colocou as mãos sobre a mesa, inclinou-se levemente para a frente, olhou-nos com um sorriso e disse, espaçando as palavras:  – Vocês vão escrever!

Ela era defensora ferrenha da escrita como forma de aplicarmos o que aprendíamos, treinarmos para qualquer processo de seleção pelo qual passássemos, pensarmos de forma crítica sobre os temas, sobre a vida. Escrever era regular. Algo como toda semana. E guardávamos as criações em pastas dessas com saquinhos. Ela tornou nossas criações dignas de admiração, artigo de colecionador. Ela ainda levava nossos textos para serem publicados no jornal da cidade. Eu nem dormia. Lembro dela olhar nos meus olhos enquanto falava palavras de incentivo, que assentaram como tijolo e argamassa em mim, criando uma base sólida para que eu mesma acreditasse.

Foto do trecho de uma das redações feitas na aula de Português, publicada no jornal local em Julho de 2002.

A Rosalba Saraiva também é uma das responsáveis por me colocar aqui, escrevendo até hoje. Vanguardista, as provas com respostas separadas, de acordo com a enumeração de cada questão, era coisa do passado. A prova de Literatura deveria ser respondida em forma de redação. Tínhamos de costurar as respostas, elaborando um texto coeso. No dia da devolução, além da nota, sempre havia um recado que nos botava lá em cima, incentivador, escrito com a letra inconfundível dela. Sempre tivemos ótimos papos sobre escrita, livros, ideias.

Elas nos ensinaram a enxergar a realidade com o filtro do pensamento crítico. Nos ensinaram para além das regras da crase e dos grandes autores. Elas nos ensinaram a pensar.

Até hoje, escrever é um ato que exerço, também, para me organizar como ser humano. É o espelho real, como eu chamo, porque percebo detalhes sobre quem eu sou que não conhecia, percebo como os outros podem me enxergar e analiso se está de acordo com quem sou e com o que penso. A escrita é um grande divã autoanalítico.

Escrever também é uma forma de honrar com o presente que a vida me deu: a alfabetização. Hoje as pessoas jogam esse privilégio pela janela, lêem apenas títulos e expressam suas ideias em paupérrimos caracteres. Ideias muito parecidas, diga-se de passagem.

Hoje, em um evento literário da nossa cidade, pude matar a saudade do convívio com uma das minhas professoras incríveis. Eu, sentada junto ao público, de ouvidos atentos. A professora Rosalba, à frente, trazendo a leitura de alguns trechos da obra Pegue a sua vida de volta!, que escreveu durante o auge da pandemia.

Em um primeiro momento, revisitar o ano de 2020 pareceu desafiador. No decorrer dos minutos, revelou-se artigo de urgente necessidade. Altamente necessário fazer uma pausa no tempo para percebermos que somos, sim, sobreviventes. Até então, não tinha me dado conta do quão profundamente eu tinha enterrado aquele momento da história.

Mas a proposta era viajar de forma leve nesse tempo. E assim foi. Enquanto sentada na plateia, o título da obra ecoa em mim: pegue a sua vida de volta. Pegue, a, sua, vida, de, volta. Pegue a sua vida, de volta.

Então me dou conta de que peguei, sim, a minha vida de volta. Peguei de volta uma vida que eu já queria ter vivido. Que eu já deveria ter vivido. Eu peguei de volta algo que sempre deveria ter sido meu. Na verdade, sempre foi.

As coisas das quais a gente gosta, as coisas para as quais a gente nasceu, nossas aptidões, os assuntos que a gente domina de forma inata sempre estão latentes em nós, apenas na espera do tempo certo de aflorar. A vida é um ensaio para o que ainda não veio, o que nem sabemos se chegará. Por isso podemos errar hoje, para ficarmos melhores amanhã, quando pegarmos a vida que nos é devida.

Eu sou designer gráfica e vivi uma vida esperando pelo momento em que a minha profissão assumisse a flexibilidade que lhe é intrínseca. Era algo latente no próprio ofício. Vivi uma vida questionando por qual razão bater ponto quando necessitávamos de um computador e acesso à internet para trabalharmos. Dessa forma, poderia trabalhar de outros lugares, ter mobilidade, dar qualidade ao próprio tempo, incluindo o tempo do trabalho.

Sou uma pessoa estranha, porque moraria tranquilamente em uma cidade como São Paulo, com aquele ritmo, com aquele montante de atividades culturais, com aquela massa de poluição chocando-se contra os arranha-céus, ao passo que mora em mim uma satisfação absurda no contato com o verde, no olhar para o horizonte – isso forma caráter –, em ter terra sob as unhas.

Hoje trabalho de forma remota e consigo dar qualidade ao tempo, incluindo o tempo do trabalho. Consigo cuidar de mim com qualidade. Também consigo cuidar de quem eu cuido com qualidade. Consigo cuidar do trabalho com qualidade.

Não se trata de mudar de emprego, largar o emprego, privilégios. A mudança é mais sensível. Está nas camadas mais profundas do que nos constitui.

A pandemia conduziu a nossa vida para que aflorasse o que já estava latente em nós. Algumas pessoas da plateia compartilharam suas histórias. Que hoje, primeiro, tomam sol no pátio para, só depois, entrar em casa para lavar a louça. Antes, vivia-se um tempo insano, e quem tem a sensibilidade de perceber e a energia para mudar, prioriza esses momentos-presente da vida.

É sobre escolhas. Hoje as pessoas entendem que em vez de horas e horas dedicadas a assistirem à vida dos outros, elas podem fazer algo por elas, pela vida delas e dos seus. Seja fazendo cursos gratuitos pela internet, seja priorizando alguns minutinhos tomando sol antes de lavar a louça. As pequenas escolhas do dia a dia que ao final de um dia, de um mês, de cinco anos, faz diferença na nossa saúde física, mental, social.

“Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente”, frase de Jiddu Krishnamurti. É sobre isso. Se você não está desconfortável, tem algo errado. Se você não está insatisfeito, desconfie. Se você está firme, na mesma, talvez você seja um poste e não uma pessoa 😀

Eu e a professora Rosalba e os dois livros de sua autoria, O anjo mau que habita em nós e Pegue a sua vida de volta!.

Agora convido você a fazer as reflexões que também foram sugeridas a quem estava no evento:

  • Você enxerga uma sociedade melhor após a pandemia?
  • Em qual aspecto você melhorou?
  • De que forma você pegou a sua vida de volta?
  • Somos todos sobreviventes. Estamos honrando a vida?

Também quero saber de você: Qual profe marcou positivamente a tua vida? E de que forma isso aconteceu? Conta aqui nos comentários ; )

Fotos e texto de minha autoria, Juciéli Botton, para a Casa Baunilha.

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