A casa alugada

O meu deserto

Fico na chuva olhando para a aparência metálica da água. Sinto um esvaziamento integral. Apenas a situação gélida me faz companhia. Um barco passa pela nossa rua. As pessoas nele, em silêncio, têm pressa.

Pressa. Lembro dos oito anos de procura e espera para encontrar um lugar para nós, para a nossa casa. Desses, três dedicados ao desenho da casa que começaria construir, ainda com muitas dúvidas, receios, medos.

Construir sempre foi coisa de outro mundo. Prefiro comprar um imóvel que precisa de reformas e, aos poucos, dar o meu jeito. Brincar de casinha só que remodelando, melhorando. Mas o terreno do meu sogro se apresentava como o único caminho, mesmo sob inventário e sem a possibilidade de financiamento.

Subo no amontoado de terra coberto de mato para encharcar mais ainda a vista de tristeza. O brilho metálico na água, perturbado pelas ondas do barco, dá lugar à cor da lama. A cidade pintada de barro.

Lembro da casa alugada, precária. Chove dentro, o forro está apodrecendo e muito mofado. A casa está com a pele doente por causa da umidade. As paredes perdem pedaços do concreto, os tijolos aparentes se esfacelam. Como se imersa em um grande tanque d’água. Não podemos plantar nossa comida nela, nem estender roupa. Tomamos banho e dormimos na casa dos meus pais. A casa alugada é onde trabalhamos, fazemos as refeições e guardamos nossas coisas. Há três anos flutuamos entre essas duas casas. Nossas coisas nunca estão onde precisamos. Nossa vida fragmentada. Todos os dias juntamos os pedaços.

A chuva engrossa. Puxo o capuz. Funcionários de uma loja imersa adentram na profundidade do lamaçal a contragosto, a mando do patrão. E continuo no pensamento circular. Lembro da locatária justificando o valor do aluguel porque queria arrumar o imóvel para morarmos melhor. Nunca aconteceu. Lembro do corretor que sumiu. Da casa de madeira à venda cujo piso, mantido impecável por décadas, foi destruído antes da nossa segunda visita.

Uma conhecida se aproxima do balneário que se formou ao final da rua. Nos cumprimentamos com secos “Ois” e olhos que rapidamente se afastaram sem ter exatamente para onde ir.

Lembro de passar mal do estômago antes de fazer uma proposta pela casa do meu avô, no litoral, há alguns anos. Não tínhamos experiência nesse tipo de negociação. Era abaixo do que ele esperava, ficamos receosos com a reação dele mas a gente precisava tentar um lar. Criei coragem depois que entendi que ele já tinha passado por todo tipo de situação e viajado o país dirigindo carretas pesadíssimas, com cargas visadas por bandidos. O que seria uma neta fazendo uma oferta? O negócio não foi feito, para nosso posterior alívio, porque o universo sabe o que faz.

Lembro do final de Abril, em mais um momento de esgotamento e desespero, disse ao Bruno para tocarmos o projeto do jeito que estava, sem pensar em mais nada, sem ponderar, sem dar ouvidos aos vários receios. “Vai na prefeitura acertar a burocracia e entra na fila de um bom pedreiro”. Dois dias depois, início de Maio, o terreno fica coberto por esgoto (foto) e o Rio Grande do Sul vive uma tragédia.

Na rua passa uma charmosa e discreta sanga para onde alguns indivíduos destinam seu esgoto. O homem criou o quarto estado da água, o da água contaminada. Mais um dos infindáveis pontos negativos que nos fizeram requentar o projeto da casa por três anos.

Sempre senti, abaixo do meu estômago, um receio em construir ali. É bonita a capacidade do ser humano de se conectar com elementos sutis do espaço. Não damos mais valor a isso mas é uma capacidade inata ao ser humano, basta nos reconectarmos a ela e a respeitar o que sentimos.

Subo a lomba da rua de chão batido – outro ponto negativo – e pego a esquerda para chegar em casa. Na casa alugada. O cachorro esperando com o rabo abanando. Nem tudo são tristezas nesses anos de procura, de espera, de desesperos.

Senti o cheiro do esgoto me acompanhar nas botas de borracha, entrar pelo pátio e se abancar na área em frente à casa. Pensei nas pessoas que perderam familiares, amores, empregos, negócios, lares.

Compreendi que vivia o meu deserto. A minha busca pela casa é uma jornada pelo deserto. Na história bíblica, Deus poderia ter conduzido as pessoas à terra prometida em um estalar de dedos, só que não o fez. De nada adiantaria chegarem a Canaã se comportando daquela forma, sem união e fraternidade. Os quarenta anos de dificuldades e aprendizados em um lugar inóspito eram uma escola pela qual aquelas pessoas deviam passar, orientadas pelos mandamentos, o famoso manual de boas práticas. E uma vez aprendida a lição, puderam seguir para um lugar melhor.

Eu recebo os nãos e as portas fechadas como ações para o meu próprio bem. Livramentos, como chamam hoje. O universo funciona obedecendo a leis. Se fosse aleatório, deveríamos jogar um computador pela escada e ele atualizar para um modelo mais novo em vez de se espatifar. Se os acontecimentos da vida se dessem ao acaso, dois seres humanos combinariam seus DNAs e dariam à luz um ornitorrinco.

Se tivéssemos começado a construir uma casa logo quando chegamos, teríamos construído de forma equivocada e ela estaria debaixo do esgoto. Se tivéssemos comprado um imóvel bem rápido, como os que vimos primeiro, com o tempo ele se mostraria desalinhado com as nossas necessidades.

Tudo isso não aconteceu porque estamos sendo protegidos de más escolhas. Precisávamos observar primeiro e observação é sobrevivência. E porque precisávamos aprender também. Aprender sobre nós mesmos, sobre o que queríamos, sobre a comunidade, sobre como plantar o próprio alimento, sobre convívio, sobre os nossos ideais.

Certa noite, antes de dormir, percebi que aflorava em mim o desejo de desistir. Penso na minha casa desde muito antes da busca iniciar. Mesmo morando na cidade, mesmo quando fazia planos para ficar na cidade, mesmo comprando nosso apartamento, sempre sonhei, desenhei e construí minha casa com quintal mentalmente. Me intoxiquei com esse pensamento circular por anos. Então, com a cabeça no travesseiro, me dou conta de algo que fez os “butiás caírem do bolso”, como dizemos por aqui. A casa é um assunto, um plano, um meio (para atingir determinados fins) do qual não se pode desistir. Todos nós precisamos de um espaço, seja qual for, onde for. Nós existimos, habitamos. Habitamos a nossa vida. E ela acontece em algum lugar. Vida que se sustenta, sustentável, que é cultivada, uma cultura. Cultura de permanência, de raízes.

É um período de muitas quedas de certezas e, ao mesmo tempo, recomeços, reposicionamentos. Seguimos no deserto, aprendendo e colecionando histórias, aperfeiçoando a nossa ideia da terra prometida para quando chegarmos nela. O universo nos diz que coisa melhor está por vir. Ele já nos livrou de poucas e boas. Temos que seguir firmes, respeitando isso e mantendo a sanidade mental, que é o luxo de hoje.

Se você também estiver passando por um deserto, fique firme mas não alheio ao momento, apenas esperando passar. Aprenda, evolua a partir de quem você é hoje, para quando chegar a sua hora, poder receber o que vier da melhor forma possível.

Texto escrito em 4 de Julho de 2024 para ser publicado apenas quando o ciclo de busca pelo espaço fosse concluído.

Foto (do meu terreno) e texto de minha autoria, Juciéli Botton, para a Casa Baunilha.

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