Por aí,  Porto Alegre

O décor histórico da Biblioteca Pública de Porto Alegre

 

Era novembro de 2013. Como uma apaixonada por decoração – e por artes gráficas e coisas impressas – compro a revista Casa Vogue e não acredito no que vejo. A Biblioteca Pública de Porto Alegre estampada na capa e em fartas páginas internas. Eu ainda não conhecia e tive de esperar longos 8 anos de reforma pra isso, ou seja, morria de curiosidade pra saber como era esse prédio emblemático. Então, nesse meio tempo, tive de me contentar com o ensaio editorial de produtos de mobiliário com a biblioteca como cenário. Só que a revista tinha aplicado um filtro verde nas fotos, escurecendo os espaços, e isso só me deixou mais curiosa. Quando ela finalmente reabriu… imaginem eu entrando com um olhar de oh my god! E eu tentava disfarçar, afinal, tinha gente trabalhando lá todos os dias, acostumada a toda aquela beleza. Iam achar que eu tinha vindo de alguma realidade paralela. Não, eu não tinha nem uma câmera em mãos pra fingir que era turista.

A tinta descascada na parede revelando desenhos espetaculares por debaixo é de assustar. Mesmo quem não sabe da história percebe que aquela tinta não representa boa coisa. Quis entender mais sobre o prédio, a tinta, os desenhos e tudo o mais que pudesse absorver. O que eu fiz? Fiz o que se faz em uma biblioteca. Peguei dois livros sobre a história do prédio, sentei junto a uma das mesas de leitura lindas, em madeira, com detalhes de flores entalhados, e pesquisei.

 

 

 

Então, aqui estão os fatos de onde surgiu tanta beleza e porque ela foi coberta de tinta, além das fotos que fiz dos espaços e detalhes desse lugar único na capital gaúcha – reparem nas duas fotos acima: a antiga mostra as paredes laterais da escada repletas de desenhos. Na foto acima dela, a mesma parede só que hoje, coberta com tinta e revelando os desenhos onde ela descascou.

O prédio que conhecemos hoje é de 1912. É tempo que não acaba mais e uma época em que o positivismo já influenciava muito o Rio Grande do Sul, o que explica as autoridades quererem um espaço com jeito de “altar do conhecimento”. Aliás, parece que Victor Silva, quem orientou o projeto e a decoração, teria se inspirado na igreja de Sainte Geneviève de Paris que, inclusive, foi transformada em biblioteca.

Dizem que os jornalistas que conheceram a biblioteca antes da sua abertura oficial ficaram “impressionados com o luxo e o requinte do prédio”, e isso foi em 19 agosto de 1922, porque o povo mesmo pode entrar com tudo só depois, em 7 de setembro de 1922, quando a independência do Brasil completava 100 anos. A inauguração foi considerada pelo Correio do Povo daquele dia como o mais significativo acontecimento cultural do Rio Grande do Sul.

Só para termos uma noção da possibilidade de leitura na capital da época, Porto Alegre tinha 180 mil habitantes e jornais diários como A Federação, Última Hora e Correio do Povo. Além de dois jornais em língua alemã: Deutsches Volksblatt e o Neue Deutsche Zeitung. Entendeu? Já a Biblioteca contava com 30 mil volumes – hoje são 240 mil) – e, nos primeiros anos, 2 mil visitantes ao mês.

Uma coisa precisamos ter em mente quando conhecemos o prédio da biblioteca: todos os detalhes, os materiais utilizados e os objetos de decoração foram escolhidos por quem estava à frente do empreendimento. Enquanto todos os detalhes não estivessem de acordo com os senhores da obra, ela não era concluída. Ou seja, a base das escolhas foi o gosto pessoal. Muitos elementos realmente não têm uma justificativa, o que não diminui a sua beleza. Não à toa, o estilo do prédio é considerado eclético.

Mas quem pintou aquilo tudo? O alemão Fernando Schlatter foi quem venceu a concorrência para a pintura externa e a decoração interna. Nascido na Baviera, se especializou em afrescos na Itália e veio para o Brasil em 1899, se estabelecendo como colono em Ijuí (minha terra!), mas indo trabalhar em Porto Alegre no ano seguinte como pintor. Cobrou cem mil réis pelo trabalho. Cifrõezistas de plantão, façam as contas. Fernando também foi poeta, cantor, ator e, pasmem! foi ele quem introduziu no nosso país a tradição de se realizar a Oktoberfest. Outros pintores e escultores também participaram. O pintor S. Incerpi, os escultores Alfred Adloff, alemão, Eduardo Sá, carioca e adepto do positivismo e Giuseppe Gaudenzi, italiano que desenhou as esculturas do jardim.

As oito belíssimas colunas no salão de consulta são de mármore Carrara, da Itália. O chão em parquet bicolor é feito com as madeiras Pau-amarelo e Acapu (castanho escuro), ambas vindas das matas paraenses. Há ornamentos de ouro e, nas extremidades das colunas de mármore, “capitéis de bronze dourado a fogo”. Os lustres são da Diehl & Cia. As estantes dos livros são de aço. Para aguentar o peso de tudo isso, o piso foi reforçado com vigas de ferro. O elevador é um luxo só, e ainda é o mesmo e ainda funciona! Ele é da marca Otis e está onde ficava o hall da entrada da Rua General Câmara. A fábrica Joly, da Alemanha, forneceu a escada de ferro fundido. Os móveis, as aberturas e os objetos de adorno, desenhados pelos artistas, foram produzidos por duas firmas: a Jamardo Irmãos, uma oficina de marcenaria que ficava na antiga Praça Senador Florêncio e atual Praça da Alfândega, e a João Vicente Friederichs S.A..

Atenção que agora eu vou falar da Sala Egípcia. Sim, eu já falei em ouro, já falei em mármore Carrara, já falei em elevador que funciona há um século. Mas eu ainda não falei da Sala Egípcia. E quando a gente bota um “egípcio” numa frase, num texto, numa fala ou numa sala, se faz um silêncio faraônico. Quem não gosta do Egito, gente? Eu, que nunca fui lá, sou louca por toda a iconografia batida do Egito. E assim era também o Victor Silva. Ele decorou com a temática do Egito a sala onde trabalhava. Na verdade, decorou é um verbo bem contido. Eu diria que as pirâmides explodiram lá dentro e deixaram suas marcas do chão ao lustre do teto. A Sala Egípcia é linda. Eu queria morar na Sala Egípcia. Mas então… Victor nunca deixou registrada a razão da escolha da temática, mas seus poemas Esfinge e Múmias, dentre vários desse tipo, denunciam sua paixonite por essa cultura. E parece que os elementos das pinturas foram copiados de um livro pertencente a Schlatter (o alemão pintor) que foi, mais tarde, doado à biblioteca por seu filho.

Agora senta que lá vem a parte triste da história. Em 1956, o pintor Ado Malagoli, que na época era diretor da divisão de cultura da Secretaria de Educação e Cultura do Estado do RS, orienta o diretor da Biblioteca, o Arthur Ferreira Filho, a cobrir com tinta as pinturas originais para que não atrapalhassem a concentração dos leitores. Para Malagoli, elas não eram importantes, não tinham valor artístico e ainda contrastavam com a belíssima arquitetura presente. Sim, pausa fúnebre.

Faço minhas as palavras deste trecho do livro: “É difícil entender como pessoas envolvidas com arte, que se pressupõe sejam dotadas de maior sensibilidade, não tenham considerado que o passado de uma região ou cidade, só se manterá vivo se as manifestações históricas, culturais e artísticas de seu povo forem resguardadas. A decoração original da biblioteca simbolizava o espírito de uma época, que deveria ter sido preservada e jamais descaracterizada. A restauração em uma obra de arte deve ser feita para que gerações futuras possam ver nela um relato documental do passado e não as tendências estéticas da atualidade.” Biblioteca | Onde circula o espírito do mundo, ELAPE, Jaci Aquino Jardim.

E pior ainda, o fato não teve tanta repercussão. Pessoas defensoras do patrimônio histórico foram suaves nas críticas e a imprensa não deu ênfase. Com todos de acordo, ou se calando e consentindo, as paredes dos halls de entrada, da secretaria e das salas de leitura foram cobertas de tinta.

Dá pra piorar esse filme de terror? Ah, dá. Em um belo dia, a senhora Leda Triches, mulher do governador Euclides Triches, vem à biblioteca e visita cada cômodo, elogiando tudo e deixando os funcionários lisonjeados. Só que sua secretária vinha atrás, fazendo anotações sem parar. Tempos depois, parte do mobiliário e obras de arte foram levados para o Palácio Piratini. Mais um ato bem bacana de descaracterização da coisa toda. Será que a Leda confundiu a biblioteca com uma loja? Só que, no caso, ela não pagou.

Com tanta ação lamentável envolvendo nossa pequena notável, a história teria que lhe fazer um agradinho, para dar aquela levantada no moral – não que alguma coisa consiga desfazer toda essa tristeza. Por volta dos anos 80, o prédio foi tombado pelo Instituto Histórico Artístico do Estado (Iphae). Em 1990, o acervo de obras raras e móveis também foram tombados. Em 2000, foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

A biblioteca já passou por vários projetos de restauração, só que bem aos poucos. Há sempre a dificuldade de se captar os recursos necessários para a continuidade dos restauros. Então, aqui vai o apelo: Gente, a biblioteca reúne tudo que o nosso estado é campeão em oferecer, aos seus filhos e também aos visitantes: história, tradição e cultura. Um espaço onde não somente o passado é residente, mas a informação, o saber e a arte ainda estão muito latentes. Às terças-feiras acontecem eventos musicais na sala do piano de cauda. Pessoas frequentam diariamente para ler seu jornal ou fazer pesquisas e estudar. Vamos cuidar da biblioteca, sim?

 

 

 

Entre as colunas de mármore, o elevador centenário que ainda está em funcionamento.

 

De cima a baixo, a Sala Egípcia não possui um cantinho sequer sem uma pintura detalhada.

 

 

 

 

 

 

 

 

Esta escultura em pedra me lembrou aquela do rosto do deus Apolo. Abaixo dela, a revista Casa Vogue aberta no editorial com a Biblioteca Pública de cenário.

 

 

 

Que nostalgia bateu vendo esta máquina de escrever. Muito brinquei de secretária na infância datilografando na máquina do meu pai. O que eu mais gostava era quando chegava ao final da linha e tinha de voltar com o rolo para o começo, empurrando ele sobre um trilho. Quando chegava na posição inicial, um som de sininho acontecia. Era o máximo.

 

 

Mesa de estudos no setor de consultas sobre o Rio Grande do Sul, com lindos detalhes de flores, entalhados na madeira.

 

 

Vidro colorido e totalmente trabalhado com padrão de arabescos.

 

 

 

Teto de uma das salas, cem por cento coberto com arte.

 

Isso é simplesmente o detalhe de uma poltrona de uma das salas.

 

Na fachada, bustos de bambambans da história universal, como Shakespeare.

 

 

Gente, eu estava louca pra ter mais informações sobre essa biblioteca linda, e também querendo muito dividir isso com vocês e ao mesmo tempo registrar as minhas impressões para que a história dela continue ecoando. Acho que todo mundo devia fazer uma visita nesse espaço que é nosso e é fantástico.

Quero agradecer à diretora Morganah Marcon, que desde o primeiro instante em que nos vimos se mostrou entusiasmada para que mais pessoas contassem sobre a biblioteca. E um muito obrigada também ao historiador Bruno Silveira Pires que me ajudou com a pesquisa, sempre muito solícito e bem informado.

Os livros consultados foram: Biblioteca Onde circula o espírito do mundo, ELAPE, Sistemas Educacionais, Rio de Janeiro, RJ; e Bibliotecas Brasileiras, de George Ermakoff, da G. Ermakoff Casa Editorial. E também o álbum antigo de fotos originais da biblioteca.

E pra quem chegou até aqui, uma faixa bônus: Há registro de vários personagens reais da biblioteca, alguns icônicos e também hilários. Um deles era um frequentador assíduo que aparentava 50 anos, apelidado de Galã. Ia religiosamente todos os dias e em cada um deles perguntava ao porteiro se alguém tinha procurado por ele. A resposta era sempre a mesma: não. Até que, cansado da mesma pergunta sempre, o porteiro decide dar uma resposta diferente, que uma mulher muito bonita, num carro vermelho, tinha vindo procurar por ele. O Galã pergunta que horas tinha acontecido isso e o porteiro: ao meio dia. Brabo, o Galã então devolve: não foi esse o horário combinado!

 

Fotos e texto: Juciéli Botton para Casa Baunilha

4 Comentários

  • MANUEL C. J. SALVATERRA

    Boa tarde:

    Gostei muito da sua publicação. Parabéns. Também sou grande admirador da B. Pública e não a visitei depois da reforma. Preciso ir lá breve,
    Se me permite um adendo: há um erro de informação no texto –

    ´ a Jamardo Irmãos, uma oficina de marcenaria que ficava na antiga Praça Senador Florêncio e atual Praça da Alfândega´

    – sou livre – pesquisador do assunto e posso dar-lhe informações corretas sobre a orígem dos móveis.
    Se interessar, contate-me.

    Manuel Castelar J. Salvaterra, eng. civil
    manuelsalvaterra@gmail.com

    • Juciéli

      Oi, Manuel,
      fico feliz que tenha gostado da publicação. Muito obrigada.

      Sobre a origem dos móveis, as informações que mencionei no meu texto foram extraídas dos dois livros que cito, que consultei na biblioteca e que foram indicados pelo bibliotecário.
      Se você tiver mais fontes seria ótimo poder incluí-las na publicação. Podes mandar por meio do “Contato” que fica no menu do site.

      Obrigada.

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