Faz tanto tempo que quero escrever sobre isso. Desde os meus, talvez, sete anos. Pois é, eu sei, uma menina, no início dos anos noventa, não pensaria que precisa exorcizar um problema escrevendo publicamente sobre ele. Mas digamos que sim porque na tenra idade eu já me sentia muito incomodada com isso.
Era a festa do meu aniversário e meu pai tinha uma filmadora portátil que generosamente me deixava manusear. Lá pelas tantas, tive a brilhante – e, mais tarde, revelando-se fatídica – ideia de pedir aos convidados que dissessem uma mensagem à aniversariante, gravada por mim, claro.
O primeiro convidado disse que eu era uma menina muito linda. O segundo falou da minha beleza. O terceiro contou que me achava muito bonita. O quarto: “ela é linda”. E assim por diante.
Visualizem uma criança, um ser com ralos conhecimentos de vida, entristecida com elogios como esses, uníssonos, a ponto de uma adulta nunca ter esquecido. As crianças percebem e sentem, sim. E algumas experiências conseguem se perpetuar nas caixas pretas do nosso inconsciente porque também são reforçadas por novas, reunindo e calcificando as tristezas por semelhança.
No colégio, as meninas não gostavam muito de mim, e eu não entendia a razão. Quando contava a um adulto, recebia como resposta um “É porque você é bonita”. Não existe frase pior para se dizer a uma menina em formação. Ainda mais sugerindo que eu me conforme com a situação de rejeição na escola, pois “já sou bonita então não posso querer ter tudo: beleza e amigos”. Isso coloca a beleza acima de qualquer valor, fazendo a menina acreditar que a culpa é dela e que não adianta se esforçar para reverter a situação.
Dizer a uma garota que coisas ruins acontecem com ela porque é bonita “e tudo bem” a faz ficar vulnerável e à mercê de todo tipo de agressão, abuso etc. Eu não estou supondo aqui. Isso é um depoimento.
E se as meninas não gostam de outras meninas porque são bonitas, é porque são doutrinadas a não gostarem, são criadas nesta cultura em que temos de ser competitivas na capacidade de atrair os homens, e não por sucesso, emprego, desafios, a que os meninos são incentivados e encorajados. E o fato de os adultos saberem qual é a razão delas não gostarem de mim é a prova de que eles ensinam e perpetuam essa cultura da competição negativa entre as meninas.
Já com quatorze ou quinze anos, a escola em que estudava me convidou para representá-la num concurso de “beleza” da região. Eu: recusando com todas as forças; a diretora: tentando me vencer pelo cansaço. Ok, guardem essa informação. Tinha um fato: eu era a única no meu grupo de amigas que não tinha celular, mas por opção. Não tinha me interessado até então e achava até engraçado as gurias no recreio falando umas para as outras “Te dei um toque ontem, tu viu?”, brincadeira que consistia em ligar para a pessoa e deixar tocar uma vez apenas, esperando que a outra retornasse, fazendo o mesmo. Uma versão mais simplória do código morse. Pois bem, depois de não sei quantos meses de insistência, a diretora lança mão do golpe final: “Sabia que o prêmio é um celular?”. Na hora, não dei muita bola. Definitivamente, participar de um concurso de beleza estava fora do meu planejamento estratégico de vida. Acho muito triste comparar mulheres, cada pessoa tem a sua beleza e eu ainda morria de vergonha. Eu era aquela que quase desmaiava apresentando trabalho em frente a todos e preferia extrair um dente a encenar uma peça de teatro na escola. Mas a possibilidade de ganhar um celular começou a tomar conta de boa parte do meu tempo mental. Cedi. Pensei what the hell?!
Resumo da ópera: desfilei, ganhei e recebi um buquê de flores e uma semijoia. Ao passar pela diretora na escadaria interna do clube, do alto dos meus saltinhos de ingenuidade, perguntei sobre o celular. Ao que ela, tirando o cigarro da boca e olhando, a meia pálpebra, ao longe, disse: vou ver. Mas ela nem precisava ter respondido coisa alguma. Mal concluo a pergunta, já começo a assistir, fora do meu corpo, ao meu debut. O debut no mundo adulto. O mundo em que as pessoas mentem para conseguir o que querem, onde o fim justifica os meios. Não era difícil me observar no recreio de mãos vazias.
E o título me abriu portas para outros títulos, como o que os meus colegas me deram: “o corpo”. Na condição de dupla com a minha melhor amiga, eu era o corpo e, ela, a cabeça, a inteligente. Quando digo para as pessoas que não tenho a menor saudade dos tempos de escola elas acham um crime.
Falar para uma menina que tudo que ela tem é a beleza equivale a amarrar em seu pescoço uma corda ligada a uma âncora. Como nós fazemos com os meninos? Nossa, como você é forte! como você pula alto! como você é engraçado! como você é esperto! Frases trampolim para a construção de uma autoestima elevada, de um “chegar lá” no futuro.
E essas experiências, que considerei contáveis aqui, se amalgamaram a tantas outras, na faculdade, nas empresas em que trabalhei, que fizeram eu me fechar de uma certa forma com relação a algumas situações e pessoas. Adoro as minhas camisetas de banda, mas é praticamente tudo o que tenho no meu armário. Não consigo usar nada decotado. E quando uso, é um deus nos acuda.
É difícil resgatar uma imagem que sempre esteve ali e que faz parte do feminino, mas que pode trazer tudo à tona. Preciso me tratar? Preciso. Mas depois eu vejo isso – quem nunca?
Hoje, tento fazer o que está ao meu alcance com relação às meninas com quem convivo, para que elas não se sintam resumidas e presas à beleza. Para o aniversário de dez anos da minha afilhada, decidi escrever um cartão sem mencionar o quão ela era bonita. Ela é uma criança sensacional. Devora livros de uma forma encantadora. Memoriza tudo. Faz as contas para descobrir a idade das pessoas envolvidas na obra com base no ano em que elas nasceram, se ainda estão vivas, grava o nome dos ilustradores. Ela gabaritou a prova de ciências – ela ama ciências – e também a de redação. Inclusive, não há uma correção gramatical sequer na prova dela. Sem mencionar que é uma companhia muito agradável, sabe conversar com as pessoas. Então mencionei o quão inteligente e esperta ela é, a criatividade dela, a coragem em muitas situações nas quais me falta, e no modo como ela nos faz enxergar a vida. Foram esses os elogios que registrei no cartão e que, espero – com alguma certeza –, viraram incentivos.
Ainda enfrento muita frustração, para não dizer tristeza. Quando publico, no Instagram, por exemplo, sobre uma situação cômica, ou até uma crítica referente a um problema, ou faço graça com alguma foto do passado, na verdade pareço ter escrito tudo em sânscrito. As pessoas comentam apenas: linda. Posso ter resgatado uma pessoa de um prédio em chamas, posso falar de reciclagem de lixo, posso mostrar minha testa amassada após um desmaio. Tudo que recebo de volta é “Linda”.
Quis compartilhar essas experiências porque sempre há tempo para tentarmos construir uma realidade diferente, para melhor. Vamos dar oportunidade às meninas para se expressarem de todas as formas, com sua força, suas bobices, seus gritos e não somente com o esmalte e a roupa. Vamos aplaudir sua criatividade e coragem. Vamos dizer a elas o quão lindas elas são, no momento em que acordam. Vamos cortar a corda das âncoras e dar-lhes asas, ou capas, como as dos super-heróis.
Arte gráfica e texto de minha autoria, Juciéli Botton, para a Casa Baunilha.