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A Stranger in Shanghai me lembrou Em louvor da sombra

Não entendo uma palavra em mandarim mas a beleza e esmero da série A Stranger in Shanghai foram suficientes para me manterem como uma múmia paralítica diante da TV.

A série transmitida pelo canal NHK World Japan, a emissora pública do Japão, onde sempre vou parar quando começo a zapear, não fornece legendas, nem mesmo em inglês.

Beleza e esmero são suficientes para me fazerem acompanhar uma produção audiovisual sem entender a linguagem verbal. É da minha pessoa sempre observar as coisas do mundo (e de fora dele, inclusive) sob o olhar da criação e da produção.

Niemeyer disse que quando uma forma cria beleza, tem na beleza sua própria justificativa.

Pesquisei onde assistir de forma que pudesse entender a trama, mas a produção de 2019, que estaria na segunda temporada, não está disponível para o Brasil.

Pelo que li sobre a produção, em escassos textos na internet, pude entender que a série trata do escritor japonês Akutagawa Ryūnosuke, um ícone da criação de contos japoneses. No enredo serial, ele desembarca na Shanghai dos anos 1920 e fica desapontado ao perceber a degradação e a decadência a que chegou a China moderna.

Enquanto observava o visual, notei um flerte entre a série e o livro japonês Em louvor da sombra, obra pela qual tenho um carinho imenso, daqueles livros que parece que colocaram no papel o que tu já pensava.

Akutagawa, retratado na série, e Junichiro, autor do livro da sombra, são contemporâneos. E assim como o personagem real do seriado, Junichiro também reflete sobre algumas decepções advindas da modernidade dos anos 1920, sobretudo a trazida pela luz elétrica, que com tanto brilho escancarado parece fazer a cultura visual japonesa, que é apenas milenar, perder a razão de ser.

É possível enxergar na série os belos espaços tradicionais japoneses descritos por Junichiro em sua publicação de 1933, com decorações e arquitetura que contemplam a sombra, os cantos escurecidos, a luz frágil recostada sobre uma alva xícara de louça, os detalhes primorosos de cada peça de ornamento.

Em louvor da sombra remonta a época em que a luz fria advinda da eletricidade acendeu em quase todos os cantos das casas e restaurantes do Japão, fazendo aflorar um saudosismo por uma estética sombria, que ajuda a conter até mesmo gestos e ações.

O livro revela que os artefatos japoneses como louça, vestuário e arquitetura, de visual esculpido há milênios, assim foram feitos para serem comtemplados à sombra, e não sob a luz de uma lâmpada elétrica fria, cujo próprio design nada tem a ver com o restante do espaço.

Junichiro Tanizaki escreveu, antes de mais nada, sobre a luz, pois é dela que deriva a sombra. Ele fala da importância da luz natural, que como a própria palavra exprime, chega com naturalidade nos objetos, revelando o melhor “lado” das coisas. As imperfeições, os brilhos extremos, os detalhes extravagantes, as ousadias podem parecer cafonas sob a luz ofuscante, brilhante e fria. Quando na verdade guardam em si a garantia de existirem sob a sombra, que trabalha lado a lado com a luz suave, cujo resultado revela tanta beleza.

A produção de A Stranger in Shanghai louva a sombra, assim como faz o livro. A atmosfera da produção audiovisual usufrui do abraço das penumbras e da cumplicidade dos escuros.

O fio pálido de luz que finge revelar as coisas encobre detalhes de figurinos, objetos e feições muito delicadamente, presenteando apenas os oculares esforçados.

Pelo que li, a série foi produzida sob uma pesquisa exaustiva, com meticulosa atenção aos detalhes, como um piano de 100 anos usado na composição da trilha, além do figurino do protagonista ter sido feito com técnicas de alfaiataria autênticas da época.

Do ponto de vista de não perder nenhum detalhe visual entre as sombras, não prestar atenção na trama até que se revela bastante útil.

Ai, ai, esperar que as coisas cheguem aqui é tarefa para os fortes. Fico no aguardo.

Foto: Reprodução/NHK | Texto de minha autoria, Juciéli Botton, para a Casa Baunilha.

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