Tudo ia bem na pequena e mais antiga colônia de pescadores de Santa Catarina. Até que em uma manhã, o Pântano acordou triste. Encontraram o corpo de uma mulher no mar. A princípio, ela caiu do costão.
A situação fica ainda mais triste quando nos damos conta de que isso acontece muito na região de Florianópolis conhecida por suas trilhas, algumas das mais procuradas no Brasil. Dias antes, o helicóptero dos bombeiros decolou do Pântano do Sul para resgatar pessoas perdidas em uma delas.
Em apenas uma semana, em baixa temporada, você ouvirá falar sobre, no mínimo, três ocorrências, com ou sem vítimas. Quando o carro da perícia passou em frente ao terreno onde estávamos hospedados, o pedreiro que trabalhava lá olhou e exclamou: “Ah, não!” Expressão de alguém que só vê a cena se repetir.
Segundo moradores, a mulher que chorava ao lado do carro da perícia estava com a vítima no momento do acontecido. De longe, observávamos o trabalho dos peritos. Passava tudo pela minha cabeça, os incontáveis vídeos aos quais assisti sobre essa trilha do costão para chegar à caverna. Pessoas despreparadas que tiveram pura e simplesmente a sorte de chegar ao destino e voltar para casa sãs e salvas, incentivando outras pessoas igualmente despreparadas. Lembrei desse turismo de Instagram, em que vale tudo para repetir as mesmas fotos que vemos sempre.
Lembrei da Isis, a salva-vidas da praia da Lagoinha do Leste com quem conversei certa vez. A trilha da Lagoinha do Leste é das mais conhecidas do Brasil, muito procurada por turistas, inclusive estrangeiros. Aliás, encontrei muitos deles quando fiz o trajeto.
A Isis contou que as pessoas terminam a trilha da Lagoinha do Leste, chegam à praia e já emendam a trilha do Morro da Coroa, um pico rochoso e íngreme, quase sem vegetação e com muita pedra solta, de onde são feitas selfies e fotos, incluindo aquelas em que as pessoas se penduram em uma rocha e parecem ficar com os pés soltos no abismo. Elas chegam à praia cansadas, iniciam essa segunda trilha, se sobrecarregam e despencam de lá.
Nas palavras da Isis, “a trilha do Morro da Coroa mata mais que o mar”. E o mar da Lagoinha do Leste é tenso, apelidei de máquina de lavar roupas. Quando há mudança nos ventos e nas correntes, fica difícil tomar banho no raso.
Lembrei das trilhas que existem na ponta onde fica a Praia da Sepultura em Bombinhas, também em Santa Catarina. Para você ter uma ideia, em um ponto da trilha há fitas plásticas de isolamento, aquelas tiras listradas de preto e amarelo, e placas dizendo “risco de morte” e, mesmo assim, as pessoas seguiam no caminho que daria em uma piscina natural. A piscina nada mais é do que uma reentrância na rocha onde se acumula a água das ondas que atingem a localidade. As mesmas ondas podem te arrastar para o mar se te pegarem. Segundo os salva-vidas com quem conversamos em outro momento, não há resgate lá e, se a onda arrastar alguém, não terá volta. Uma cena me chamou a atenção: várias pessoas de um grupo iniciaram o percurso perigoso, íngreme e parecendo um tobogã de terra batida, lisa. Elas seguravam térmicas e cuias em uma mão, a bomba de chimarrão na boca, deixando apenas a outra mão livre.
Fiquei pensando muito sobre essas questões, sobre as trilhas que sempre existiram por algum motivo específico e que não servem para o turismo. Essa que dá no costão do Pântano e que as pessoas fazem para chegar à caverna começa em uma propriedade privada. Ou seja, você precisa entrar em um espaço particular. E os vídeos mostram que tanto é particular que os primeiros metros são muito bem demarcados, porque nada mais é do que o caminho dos carros após o portão de entrada da propriedade.
Depois, segundo os incontáveis vídeos que existem na internet, o caminho continua em um trecho de mata bem fechada. Tão fechada que é o próprio indicativo de que não é muito frequentada. É o segundo aviso de que você não deveria estar ali – após os avisos das placas de propriedade privada da entrada.
Antes de chegar a esse início de mata fechada, há desvios no caminho do carro que dão para o costão e que são usados pelos pescadores, pessoas que muito provavelmente se criaram frequentando essa área e sabem onde estão se metendo e o que estão fazendo.
Depois do percurso de mata fechada se chega ao costão. Mar aberto. Apenas um penhasco de rochas. Podemos dizer que a trilha acaba ali. Não há mais trilha. O que há é a continuação daquela natureza, que está em constante mudança.
Imagine uma descida em 90 graus, com pequenos pedaços de rocha para você apoiar metade do pé. Em alguns momentos, precisa abraçar, literalmente, as rochas para conseguir passar. O pisoteamento das pedras, onde as pessoas passam e se apoiam para descer, o efeito das intempéries, das ondas, dos ventos, da maresia, tudo isso vai deteriorando o material, rachando com o tempo, se quebrando e transformando em lascas. Ou seja, aquele caminho nunca é o mesmo. Aquele caminho que você viu num stories, assistiu em um vídeo, não está mais lá. Aquele caminho não é um caminho. A trilha para a caverna do Pântano do Sul não é uma trilha. É a continuação da natureza que, caso você opte por transpor, talvez conte apenas com a sorte para vencer.
De longe, víamos a mulher recebendo abraços de desconhecidos, os moradores. Um mal estar geral. Procurei sobre o caso em todos os veículos de comunicação da região que encontrei durante a minha pesquisa e nada se falou a respeito. Nada. Nenhuma palavra foi dita. Nem sobre o resgate das pessoas perdidas na trilha dias antes. Seria para não espantar os turistas? Mas não é importante alertar sobre os perigos?
Se colocar no lugar do outro. Sentir a dor do outro. Saber que há muita informação equivocada por aí. Temer pelas pessoas que se encorajam com base na sorte dos outros.
Espero que episódios assim fiquem cada vez mais raros. Que as pessoas encontrem alegria, prazer e realização em outros momentos da vida, em outros espaços.
Este não é um tema abordado aqui no blog, mas eu não poderia deixar de falar sobre o que vi. Isso me toca. Eu adoro o Pântano, adoro a comunidade, as pessoas, a natureza. É muito triste e isso é o mínimo que eu posso fazer: tentar, por meio deste relato, chegar até alguém que esteja pensando em se aventurar em lugares de alto risco.
Foto e texto de minha autoria, Juciéli Botton, para a Casa Baunilha.