Lembro como se fosse hoje o professor de Literatura sendo bem assertivo: “Se no vestibular tiver uma questão perguntando qual é o personagem principal de O Cortiço, lembrem: é o cortiço!”. Eu poderia errar qualquer outra questão, menos essa. Porque era algo fora do comum o personagem de uma história, figura sempre associada a uma pessoa, ser um espaço, onde circulam tantas outras.
Pois bem, o Arante é uma pessoa. O Arante é o personagem principal. Tem alma. Tem espírito. Tem família. Tem filhos. Tem legado. Tem um abraço quentinho depois de um dia chuvoso e frio. Tem empatia. Lê poesia de frente para o mar. Ouve a todos. Ombro amigo.
Fui atrás da decoração com os milhares de bilhetinhos e acabei encontrando, acredito que como muitos, esse amigo. Eu tive sorte, acho, em conhecê-lo no dia em que tomei o banho de chuva da minha vida, pois se mostrou muito acolhedor.
O Arante é aquele cara cuja vida “é um livro aberto”. Cada amigo que passa pela sua vida deixa uma história, que ele compartilha com todos. São pequenas tatuagens no corpo de um senhor muito jovem. Os garçons trazem uma pequena cesta com caneta, papel e fita para que possamos registrar nossa passagem. Quem quiser, claro.
Muitos elementos pesqueiros compõem o Arante.
Acima do armário, latas de azeite de oliva de tudo que é canto do mundo. Antiguidades.
O Arante é todo em madeira, o que deixa ali dentro mais aconchegante que qualquer tempo que esteja fazendo lá fora. As toalhas em padrão de piquenique trazem esse clima mais caseiro, mais próximo da casa da gente. E, sério, preto e branco ♥. Tem como ser melhor? E reparem que o número da mesa é um peixe em relevo na própria madeira.
Eu fui de buffet livre com frutos do mar e, na época, maio deste ano, estava R$ 69,00 por pessoa. Há também opções à la carte. Provei ostra pela primeira vez e foi uma das experiências mais memoráveis. Não somente pelo sabor em si, mas pelo clima todo, aquele dia cinza, o mar, o Arante. Sempre tive receio de passar mal, mas uma menina de uns seis anos chegava à mesa com o prato carregado de ostras e, pacienciosa, abria e comia uma a uma. Obrigada, menina, pelo incentivo.
Os camarões fritos mal chegam ao buffet e a travessa já esvazia.
O Arante tem um senso de humor que é só dele.
O Arante escuta todos.
Nós chegamos cedo mas posso afirmar que o Arante tem muitos amigos de tanto que enche! A cozinha ainda preparava os pratos, a mesa do buffet ainda não estava posta mas o Arante desde muito antes te recebe de portas, janelas e coração abertos. Tá entendendo quem é ele?
Os morros querendo aparecer sob a névoa.
Os garçons usam camisetas que estampam vários bilhetinhos. E a trilha sonora… sambas gravados por artistas locais que falam das lendas e da cultura de Floripa. É muito clima, o Arante.
A história do Arante refletida nos rostos de pescadores, benzedeiras e tantos outros ícones.
O Arante é tão personagem principal que ainda acolhe verdadeiras lendas da ilha como a benzedeira Ilda Martinha Vieira, conhecida como tia Ilda. Eu tive a felicidade e a honra de vê-la neste dia que estive no Arante, em maio deste ano. Ela estava benzendo uma criança no colo da mãe e havia uma outra esperando para ser atendida, também acompanhada da mãe. Fiquei realmente muito tocada com a presença dela. Ela faleceu no começo deste mês de setembro, dia 04, aos 106 anos de idade – de acordo com o jornal da foto, de 2014, ela tinha 102 anos na época. A reportagem conta que as benzedeiras surgiram no Brasil no século 16, com a chegada dos jesuítas, e em 2002 um levantamento concluiu que havia 40 delas na cidade de Florianópolis e 80 apenas no litoral do estado – herança dos açoreanos -, comprovando que a busca da cura por meio das mãos milagrosas é uma tradição forte. Um historiador conta que há 40 anos era comum as pessoas procurarem a benzedeira antes de consultarem um médico. Tia Ilda era uma das mais antigas da ilha. Aprendeu com a mãe a retirar do outro os males que o atormentam. Saía de casa todas as tardes para ver novela no Arante e atender as pessoas, entre elas, turistas do mundo inteiro.
A bandeira do Divino Espírito Santo. A Festa do Divino é celebrada muito fortemente em Florianópolis, por vários meses. Nos dias em que fiquei na ilha, em maio, via sempre passeatas com a bandeira em homenagem a ele, em muitos dos bairros. Na estante em madeira, além da coleção de máquinas de escrever e registradoras, alguns bilhetinhos emoldurados em porta-retratos.
O pequeno altar ficou coberto de recados. Uma renda começada e feita com bilros, técnica antiquíssima e que faz parte da história e da cultura da ilha – Floripa possui até a Avenida das Rendeiras. O Arante gosta de valorizar a cultura local.
Nas paredes, além de bilhetinhos, há cartazes antigos com artes gráficas singulares e muitas reportagens sobre o Arante, sobre a “onda esquisita” que destruiu o bar e os mistérios da Ilha da Magia.
Tem também uma foto do “seu” Arante, olha ele aqui:
Em alguns cantos, fotos reveladas. Coisa que a gente não faz mais. Nostalgia pura. Me deu vontade de montar um painel em casa.
Não faltam placas de “bem-vindo”. O Arante é muito querido.
Nosso personagem principal fica na praia Pântano do Sul, uma das mais antigas colônias de pescadores de Santa Catarina, ao sul da ilha de Florianópolis, distante 30 quilômetros do centro. Mais precisamente, na Rua Abelardo Otacílio Gomes, 254.
Você pode conferir outros lugares para comer em Floripa clicando aqui.
Fotos e texto: Juciéli Botton para Casa Baunilha
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